“Zé, me arruma um lápis e um pedaço de papel” – disse-me João Ubaldo, um pouco afobado, depois de apalpar-se à procura de um e outro. Eu também não tinha nem lápis nem papel. Tínhamos sido levados em ônibus especial do Habana Riviera, onde estávamos hospedados, para aquela casa, sem que soubéssemos do que se tratava. Lá, ficamos sabendo que era a casa de Armando Hart, ministro da Cultura de Cuba. Tratava-se de um encontro social de encerramento das atividades do júri do Prêmio Casa de las Américas, no início de 1981, para o qual cinco brasileiros haviam sido convidados: Antonio Candido, João Ubaldo Ribeiro, Gianfrancesco Guarnieri, Márcio Souza e eu.
Em cadeiras de plástico, no jardim da casa, sentei-me ao lado de João Ubaldo e de Berenice, sua mulher, que estava grávida do primeiro filho de ambos. Pelo canto do olho, vi que um carro preto parara na entrada da casa e dele saía Fidel Castro. Disse a João Ubaldo: Fidel chegou. Ele ria de mim, como se eu estivesse fazendo troça, quando Fidel entrou no jardim, nos cumprimentou e sentou bem perto de nós. Ubaldo saiu por um instante à procura de papel e lápis e voltou com um exemplar do Granma, o jornal do Partido Comunista Cubano, e um lápis. Na margem branca anotava o que Fidel dizia no bate-papo que ali começava e duraria umas três horas e o tempo de consumo de dois charutos. Numa surpreendente informalidade, Fidel discorreu sobre as relações de Cuba com os diferentes países da América Latina, contou o que os cubanos “andaram aprontando” na Venezuela, pintou um retrato de Cuba naquele momento. Pouco depois de nossa volta ao Brasil, João Ubaldo publicou a “reportagem” inesperada nas páginas do Pasquim. Vi a metamorfose do romancista e contador de casos em jornalista na minha frente, uma transfiguração súbita a denotar a prontidão de um intelectual completo.
Nós nos conhecemos em Havana, no aeroporto, chegando. Brincalhão, juntava os diferentes e os desconhecidos, que éramos quase todos ali, mas um brincalhão sério. Deixou isso claro na noite de nosso último jantar no pequeno hotel em que fomos alojados, na Ilha de Pinos, para fazer a leitura dos numerosos originais de livros em língua portuguesa que concorriam ao prêmio. Sairíamos de lá para Havana com o nome da vencedora brasileira, Ana Maria Machado, pelo belo livro De Olho nas Penas.
As cartas
Estávamos conversando quando Ubaldo pegou uma laranja da mesa e cortou-a ao meio. De relance, o vimos tirar de dentro dela uma nota de um dólar, ainda molhada de sumo. Escritor fazendo mágica? “Não é mágica”, explicou. Cortou outra, e outra nota de dólar saiu de dentro. Os dois cicerones que nos acompanhavam, e se soube serem do serviço secreto, alarmados, queriam saber como se fazia aquilo. “Aqui dólar dá nas laranjeiras”, explicou com malícia. “Vocês estão perdendo dinheiro.” Provavelmente, não dormiram naquela noite.
Depois da volta, sobretudo depois de 2000, com a internet, trocamos muitas mensagens em torno de um interesse comum, o uso popular das palavras “novas” que, através da publicidade, do rádio e da TV chegam ao cotidiano das pessoas comuns. Ele tinha uma besteiroteca de fotos de propaganda e avisos que documentam o uso popular da língua portuguesa, como o escrito num bolo: “Parabéns grassa você é muito espessial”, “Deus potrêja esta casa”, “Vende-se filhote de lavrador” (num canil), “Vende-se cochão altopédico”. Acrescentava pequenos comentários, como se fosse coisa séria.
Certa vez, decidi escrever um artigo para minha coluna no caderno Metrópole sobre a casa da marquesa de Santos. Um colega vira na Academia Brasileira de Letras cartas de amor trocadas entre d. Pedro I e sua amante. Ele se assinava “Imperador” e ao lado da assinatura colava alguns dos seus pelos pubianos. Escrevi a João Ubaldo pedindo socorro. Na mensagem à bibliotecária da Academia, ele explicou que um amigo precisava de informações sobre d. Pedro I. Mas formal, para evitar a suspeita de malícia, foi logo esclarecendo: “Não é minha intenção envolver a senhora com as trapalhadas amorosas de Sua Majestade”. Não sei como ele fez, porém em pouco tempo alguém me escrevia dizendo mais ou menos o seguinte: “Professor, encontrei as cartas, mas não encontrei os pelos. Tenho uma amiga que é bibliotecária na Biblioteca Nacional, onde também há cartas de d. Pedro. Vou pedir a ela que faça uma busca”. Mais adiante uma simpática pessoa da BN me escrevia: “Professor, não achei as cartas, mas achei os pelos numa caixinha”.
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José de Souza Martins é sociólogo, professor emérito da Faculdade de Filosofia da USP e autor, entre outros, de Uma arqueologia da memória social – autobiografia de um moleque de fábrica (Ateliê)