A morte de João Ubaldo Ribeiro significou para a literatura brasileira um revés de grandes proporções.
Embora fosse conhecido do grande público principalmente por suas crônicas – bem-humoradas, cáusticas ou emotivas–, publicadas toda semana em jornais do país já há muitos anos, o escritor itaparicano foi acima de tudo um grande romancista.
O mergulho em cada um deles parece propiciar uma vivência única, uma vez que são muito diferentes entre si, em variados níveis: gênero, tema, tom, espaço(s) e época(s) e, em particular, no nível da linguagem.
Talvez seja precisamente nesse quesito que Ubaldo se sobressaía vivamente em meio a seus contemporâneos.
O modo extraordinário com que criou seus personagens e narradores, conferindo-lhes voz de maneira ímpar, é um imenso diferencial, naquilo que constitui a própria essência da literatura –o uso da língua por um escritor.
João Ubaldo revela uma capacidade modelar e admirável de, no afã de dar vida a uma personagem, criar para ela uma linguagem absolutamente peculiar, que a identifica de maneira plena, que a situa numa outra época, que a insere nesta ou naquela classe social, deixando marcas profundas no inconsciente e na memória do leitor.
É o que nos move exultantes entre a imensa galeria de personagens que atravessam quatro séculos de história do país em “Viva o Povo Brasileiro” (1984) ou nos faz penetrar fundo na mente desse militar rude que atravessa o sertão nordestino com um preso político, em “Sargento Getúlio” (1971).
Pode-se dizer que “Viva o Povo” é um dos romances mais belos do Brasil.
Ao escritor sobrou ousadia e competência ao bancar o desafio de cobrir cerca de 330 anos da história do país (do século 17 ao 20), criando uma espécie de “epopeia às avessas” que leva às últimas consequências uma questão que é das mais caras em nossa literatura: a sondagem da identidade nacional.
João Ubaldo leva ao leitor uma história que não é a história oficial, dos compêndios escolares, uma história triunfal de vencedores, dos “grandes vultos e heróis nacionais”.
Procura, antes, focalizar a história com agá minúsculo, história da gente do povo, flagrada em seu cotidiano na luta pela sobrevivência.
Elabora um romance magistral que tem o mérito de, superadas as primeiras 60 páginas, um pouco mais difíceis para os menos experientes, agradar tanto à crítica literária quanto ao leitor comum.
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João Luís Ceccantini é professor de literatura brasileira da Unesp-Assis