Ou é falta de assunto ou “Poder” desenvolveu uma fixação psicanalítica por José Dirceu. Desde 3 de julho, quando começou a trabalhar no escritório de um amigo advogado, o ex-ministro foi objeto de ao menos 13 notícias no impresso e no site.
No começo fez sentido. Após meses de batalha judicial para obter o direito de trabalhar fora da prisão, a liberdade parcial do petista e sua volta à circulação eram notícia.
A cobertura foi extensiva no primeiro dia, apesar da pobreza do roteiro prisão-escritório-prisão: quatro reportagens (entre impresso e on-line), com direito a dois vídeos.
O primeiro, com intermináveis 3min17s, o acompanhava desde o portão do presídio até a porta do elevador da firma -passando pela carona, o carro sendo estacionado, a burocracia da identificação na portaria do edifício. O segundo, de 1min56s, mostrava o ex-ministro deixando o batente e fazendo o caminho de volta. Cinco minutos de flashes ruidosos sem nenhum diálogo.
Então já não era para tanto, mas, como foi dito, havia notícia. O mesmo não se pode dizer do material publicado/postado depois.
A cobertura da rotina dos principais presos tem rendido títulos que chegam a ser engraçados, de tão irrelevantes: “Condenados do mensalão saem para trabalhar; Dirceu vê jogo da cadeia” (5); “Em segundo dia de trabalho, Dirceu chega cedo e recebe advogada” (7); “Dirceu não sai para trabalhar nesta terça e verá jogo do Brasil na cadeia” (8), “Dirceu faz exame admissional antes de ir para o trabalho” (11).
A última circulou na terça (15), um texto-legenda cujo título, “Rotina”, já depreciava o conteúdo. A foto em três colunas mostrava o ex-ministro, Delúbio Soares e Valdemar Costa Neto saindo para trabalhar.
“Por favor, parem de perseguir José Dirceu. Deixem que ele viva a sua vida. Arrumem outra pauta”, escreveu uma leitora de Porto Alegre.
Não acho que seja perseguição seguir de perto o cumprimento das penas dos condenados. Dirceu e seus companheiros de benefício são pessoas com vastas conexões políticas, e não é difícil, nem seria inédito, que possam driblar os limites judiciais em algum momento ou que desfrutem de tratamento privilegiado. É papel do jornal ficar atento para noticiar, caso isso aconteça. Nem tudo o que se cobre, porém, é ou deve ser publicado -para isso existe a peneira da edição. Como dizem os terapeutas, está na hora de superar a fase, seguir em frente e usar o espaço para notícias mais importantes.
Textos e subtextos
A Folha publicou, na edição de quinta (17), reportagem relatando que Mônica Monteiro, mulher de Franklin Martins, ex-ministro de Lula e um dos coordenadores da atual campanha de Dilma, “viu multiplicar os repasses de órgãos do governo federal” para sua empresa entre 2004 e 2014.
Em resumo, o texto diz que os ganhos da Cine Group saltaram de R$ 34,2 mil em 2004 para R$ 1,2 milhão em 2013. Afirma ainda que, em dez anos, a empresa “levou” um total de R$ 6 milhões por serviços prestados para órgãos públicos, com ou sem licitação.
Mônica escreveu longa mensagem (120 linhas, contra 49 da reportagem) em que tacha o conteúdo de “frágil, superficial e tendencioso” e acha que ele induz o leitor a concluir que há ilegalidade ou infração ética no caso.
Em resposta, a Sucursal de Brasília diz que apenas reportou o aumento de ganhos e que “deixou claro” que o poder público não é o principal cliente da empresa.
É uma verdade parcial. O texto ficou longe de deixar isso claro, e o subtexto passa a sugestão de que Mônica pode ter se beneficiado da influência do marido no governo.
Reportagem e as argumentações dos dois lados são extensas demais para este espaço. Confira o material na íntegra na coluna da ombudsman no site, endereço folha.com/no1488195
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Vera Guimarães Martins é ombudsman daFolha de S. Paulo