Não é a primeira vez que o presente tema ocupa minha modesta escrita. Tampouco esta haverá de ser a última, considerando o desenrolar intrincado da vida brasileira. É fato que, no modelo vigente, em qualquer lugar do mundo, a eficiência de governos e o bem-estar de uma população são traduzidos por dados extraídos da economia. Nesse particular, portanto, o que se proclama no Brasil em nada difere de outros países. Todavia, num aspecto, o quadro nacional não acompanha aquilo que norteia considerável parte das democracias ocidentais: a prática jornalística.
É freqüente, no Brasil, enaltecer-se este ou aquele veículo de informação quando deflagra uma matéria de cunho denuncista. Contudo, lembremo-nos de algo: na Itália, ao longo de mais de três décadas, no século passado, prosperava intensa corrupção de perfil sistêmico, ou seja, a rede mafiosa havia impregnado os três poderes. Jornais e revistas não tinham como ‘entrar na rede’. Somente a parceria entre uma jornalista, Marcelle Padovani, e um destemido juiz, Giovanni Falcone, possibilitou a divulgação de criterioso estudo que resultou na publicação, primeiramente na França, do livro Cosa nostra – le juge et les hommes d’honneur (Paris, Austral, 1991). Em 23 de maio de 1992, o juiz foi assassinado pela máfia; a jornalista foi preservada. Em 1993, o livro foi publicado no Brasil: Cosa nostra: o juiz e os homens de honra (Rio, Bertrand do Brasil).
A suspeita da credibilidade
O que pretendi insinuar, no parágrafo anterior, é simples: a função do jornalista é apurar, noticiar e criticar. Desvendar e denunciar são atributos pertencentes a outras esferas. Não reconhecer a diferença conceitual e espacial entre os distintos campos define quem vive e quem morre: Marcelle Padovani está viva; Tim Lopes está morto. Na Itália, a operação ‘mãos limpas’ (mani pulite) rendeu eficazes resultados; no Brasil, ainda estamos distantes da ‘limpeza necessária’. A diferença estratégica entre as duas situações (italiana e brasileira) diz respeito à compreensão mais profunda do que representa a atividade jornalística.
Na cultura européia, não há a figura do ‘jornalista-herói’. A informação e a crítica estão acima do ‘furo sensacionalista’. Na formação jornalística brasileira, não fica clara a distinção entre os procedimentos que caracterizam o ato de ‘apurar’ e o ato de ‘investigar’. O primeiro é da competência do jornalista; o segundo é da alçada da polícia.
No modelo brasileiro, é cada vez mais freqüente, principalmente no telejornalismo, o recurso de câmeras ocultas para flagrantes, depoimentos de pessoas com suas identidades ocultadas e vozes distorcidas. Tal prática, ao menos para olhares mais críticos, deixa sempre a sensação de ‘matérias combinadas’. Não há malefício maior para a vitalidade do jornalismo do que a suspeita em torno da credibilidade do que é noticiado.
Língua é código
Na imprensa européia, jornalista não é ‘formador de opinião’: não existe essa expressão, em italiano (em outras culturas européias, também não). Na cultura européia, de um modo geral, jornalista é um profissional qualificado para ‘informar’ e ‘criticar’. A diferença entre os modelos (nacional e internacional) reside na compreensão do que, efetivamente, quer dizer ‘jornalismo’: 1) situar o leitor; 2) impactar o leitor. O primeiro contextualiza; o segundo excita. Enquanto, no Brasil, não se reformular o foco, permaneceremos reféns da relação ‘notícia-impacto’, parceira do modelo ‘informação/ excitação’. O primeiro aprimora a democracia; o segundo concorre tanto para a descrença nas instituições quanto para a difusão da apatia e, na contrapartida, para a revolta bárbara.
Outro ponto merecedor de destaque, no tocante aos malefícios de um jornalismo desleixado, se dirige ao absoluto descaso no trato com a língua portuguesa. Será aceitável ter-se de ouvir, num programa como o Fantástico, a declaração de um médico nos seguintes termos: ‘A nível de costela, não se verificou nenhuma fratura’. Não menos suportável a ouvidos ainda sensíveis são discursos de deputados e senadores cujos dizeres incluem construções como: ‘Sobre essa questão, já houveram muitas discussões’.
Ora, é sabido quanto há de deficiência no modo como, há décadas, se ministra o ensino (?) de gramática, seja nos primeiro e segundo graus, seja no nível superior. Cientes do quadro, quase caótico, os meios de comunicação deveriam colaborar (filtrando e/ou criticando) para a contenção de ‘delitos lingüísticos’ que, em grande parte, são protagonizados por profissionais liberais.
A língua é um código. Como tal, a língua é muito mais do que simples meio de expressão. Um profissional da área de comunicação bem sabe a diferença entre processo de codificação e modo expressional. O primeiro inclui a relação entre discurso e ideologia; o segundo apenas evoca a associação entre produção de mensagem e estado psíquico.
A deformação na lei
Num país em que o uso da língua está carreado de deformações, auxiliaria a mídia se esta oferecesse ao receptor indicativos de erros em declarações. Que tal a presença de um ‘âncora’ capaz de, após o depoimento do médico, fizesse um educado alerta quanto à insólita expressão ‘a nível de costela…’ e outras deformidades?
Na falta de um jornalismo crítico, o malefício maior está no risco de transformar o cidadão comum em refém de atos (ou decisões) arbitrários, o que em muito compromete a vigência da democracia. Exemplo mais recente pode ser atestado na implantação da ‘lei seca’, cujo primeiro equívoco já está no próprio ‘rótulo’. Uma coisa, a princípio, é clara: somente um insano ou irresponsável pode ser favorável à parceria entre bebida e direção. Isto posto, cabe o reconhecimento de uma assimetria: a louvável concepção da lei e a deplorável aplicação da lei.
Que medidas coercitivas sejam empregadas, com o intuito de reprimir a proliferação de ‘assassinos ao volante’, é providência urgente. Todavia, é insensato que, por força de uma lei formulada e aprovada aos ‘trancos e barrancos’, transforme o cidadão em alvo de ‘roleta russa’, tendo este de se submeter ao constrangimento de uma abordagem arbitrária, simplesmente por conta da vontade de um policial em parar, aleatoriamente, este ou aquele.
Diante do quadro, no Brasil, aumenta o número de situações em que o ditado popular ‘quem não deve não teme’ também serve para o contrário, ou seja, ‘quem não deve também teme’. Trata-se de uma lei absolutamente invasiva por padronizar todos. Patologistas e médicos legistas já se pronunciaram quanto à deformação presente na lei. Dizem eles que são inúmeras as situações nas quais o aparelho (etilômetro ou bafômetro) pode acusar dosagem de álcool sem que o abordado tenha ingerido uma gota sequer. Um desses casos se refere a um ‘diabético descompensado’, conforme alertava o dr. Talvane de Moraes, numa das edições do programa Sem Censura (TV Brasil), exibido na semana passada. O doutor ainda elencou várias outras que não registrei na memória.
Um pífio mosaico
O jornalismo acrítico não só não questionou a tramitação do projeto de lei no Congresso (tudo indica que a aprovação se deu por acordo de líderes, expediente absurdo, apenas compatível com maquiagem de democracia), como ainda publica matérias que alimentam o perfil draconiano do Estado.
A título de ilustração, menciono matéria de página inteira (Folha de S.Paulo, caderno ‘Cotidiano’, 6/7/2008). Na primeira página do caderno, a manchete: ‘SP e Rio aprovam blitze da lei seca, segundo Datafolha’. Indo à página 3, outra manchete: ‘86% dos moradores de SP e do Rio aprovam a lei seca’. Prosseguindo, o início da matéria, assinada por Evandro Spinelli, contém a presente redação: ‘A maioria dos moradores de São Paulo e Rio aprova a lei que proíbe os motoristas de dirigir depois de beber’. Se isto é jornalismo, estamos perdidos. Trata-se de mais um exemplo de manipulação.
Duas cidades de acentuada densidade populacional – se somarmos as duas, chegamos a quase 30 milhões de habitantes – são reduzidas, pela ‘pesquisa científica’, ao irrisório recorte de 1.085 consultados, em São Paulo, e 812, no Rio de Janeiro. É com base nesse pífio mosaico ao qual chamam ‘amostragem’ que, jornalisticamente, se converte na frase ‘A maioria dos moradores de São Paulo e Rio aprova a lei que proíbe os motoristas de dirigir depois de beber’ (grifo meu).
Uso de tabelas é questionável
Em tempo, louve-se o artigo de José Arthur Giannotti, professor emérito da USP, publicado no mesmo jornal e na mesma data, porém, curiosamente, em outro caderno (‘Mais!’), sabidamente por poucos leitores consultado. A certa altura do artigo, afirma Giannotti, após haver deixado claro que, igualmente, é contrário à associação entre bebida e direção (respeitarei a disposição dos parágrafos contidos na publicação):
‘Chegamos a uma situação esdrúxula: em vez de o Estado determinar a medida de segurança, simplesmente se isenta dessa medida e pune aquele que bebe moderadamente, ciente de seus limites e de suas obrigações sociais.
Em resumo, pune a maioria para evitar que desregrados causem malefícios.
Na Noruega e na Suécia, a tolerância zero tem lá suas razões de ser.
No Brasil, esse exagero simplesmente repete o espetáculo de violência de um Estado fraco, que encena uma força desproporcional a seus recursos simplesmente para atemorizar. Isso equivale a legislar para que a lei não pegue, obviamente depois de saciar a boa consciência dos bem pensantes.
Como de costume, os brasileiros enfrentam um problema desfraldando a bandeira do rigor da lei para deixar tudo como está, menos o respeito pela lei, o qual se degrada a cada dia.’
Em reforço ao fato da aprovação de uma lei sem a devida prudência em consultas a especialistas, reproduzo, a seguir, trecho do que se encontra no site ChemKeys:
‘Embora a taxa de eliminação do álcool seja mais ou menos constante nos seres humanos, vários estudos indicam que diferenças bioquímicas causadas pela ingestão constante de álcool ou que a concentração diferenciada de enzimas específicas em homens e mulheres podem contribuir para pequenas diferenças na concentração de álcool no sangue em um determinado momento após sua ingestão. Todos estes fatores contribuem para pequenos erros na determinação de álcool através do bafômetro, fazendo com que a determinação do etanol, para fins legais, seja um assunto bastante polêmico.
Por isso, o uso de tabelas listando qual a quantidade e o tipo de bebida que pode ser consumida por uma pessoa, com segurança, antes de dirigir é bastante questionável. O que se pode fazer é estimar a concentração de álcool no sangue, considerando valores populacionais médios para estes fatores, como sugerido pela agência reguladora americana, ligada ao departamento de transportes daquele país (National Highway Traffic Safety Administration – NHTSA). Calculadoras programadas com estes valores podem ser encontradas nos sites de diversos fabricantes de bafômetros’.
A loucura das raves
A conclusão é simples: os organismos (por diferenças metabólicas e taxas enzimáticas) se comportam de modo diversificado, razão por que qualquer padronização leva a distorções e injustiças.
Vale, também, reproduzir parte da crônica de Danuza Leão (‘É preciso ir mais longe’ – Folha de S.Paulo, 6/7/2008):
‘As boates que esses jovens freqüentam são conhecidas por todo mundo, sobretudo pelas autoridades. Se houvesse alguns carros de polícia fazendo uma ronda por esses locais, poderiam, na hora em que esses freqüentadores estivessem saindo, saber quem passou da conta na bebida, sem nem ao menos precisar do bafômetro. Essa vigilância evitaria as blitzes, tantas vezes inúteis, com os carros da polícia correndo atrás de quem parece estar dirigindo perigosamente.
E tem as raves; não consigo entender como elas são permitidas. Alguém aluga um sítio meio fora da cidade, rola o boca a boca e a garotada vai, já sabendo que vão durar no mínimo 12 horas, mas que podem ir até 24, com um som enlouquecedor; e depois ainda tem o `after party´, já para uma turma mais seleta, digamos assim. E voltam para casa em que estado? À custa de que bebida ou droga conseguiram ficar tantas horas acordados? E haveria algum de plantão, sóbrio, para levar a galera para casa?
Esta semana morreu um garoto de 18 anos que foi a uma casa noturna do Rio com amigos. O acusado é um policial que fazia a segurança do filho de uma promotora. E se esse segurança estava armado, é porque conhecia o lugar e sabia dos perigos que lá poderiam ocorrer /…/.’
Acorde, imprensa!
O que, por fim, se deseja pontuar é a necessidade urgente de o jornalismo redefinir suas reais funções e prioridades, sob pena de a democracia, como valor supremo, se tornar um princípio esgarçado e inútil ao aprimoramento do cidadão brasileiro. É preocupante a percepção do quanto a imprensa se cala diante de sucessivos métodos de truculência, sob a falsa atmosfera de legalidade e legitimidade.
Assim se portou o governo anterior que, com José Serra à frente do Ministério da Saúde, se empenhou na aprovação da abjeta medida em fazer estampar em maços de cigarro o elenco de fotos mórbidas. Ridícula decisão. Em nenhum país de sólida e real democracia se encontra tal exagero. Assim se porta o atual governo com a insólita ‘lei seca’. Com todas as ‘sábias’ medidas coercitivas, o Brasil continua ostentando o segundo lugar em maior consumo de cocaína, além de aumentarem, a cada semana, inocentes mortos por balas ‘perdidas’. Esse será o Brasil?
Vive-se num país no qual fumantes são assassinos, sociais degustadores de bebida devem ser ‘enjaulados’, enquanto artistas de apelo popular fazem gorda fatura em comerciais de cerveja e verbas apetitosas são arrecadadas pelas empresas de comunicação. Não se iludam: os que, antes da lei, bebiam e, irresponsavelmente, saíam em seus carros, agora, com a lei, farão a mesma coisa. Por quê? É simples: não se diminui uso de droga com tiroteio; não se subtrai consumo de cigarro com fotos escabrosas e tampouco se inibem beberrões com a ameaça de etilômetro ou bafômetro em mãos de policiais. Acorde, imprensa! Seja servidora ao cidadão e não servil ao Estado. É um apelo, em nome da democracia.
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Ensaísta, articulista, doutor em Teoria Literária pela UFRJ, professor titular de Linguagem Impressa e Audiovisual da FACHA (RJ)