Encontrar informação confiável na Venezuela é um desafio. Com a polarização abissal da república bolivariana, a mídia privada é muitas vezes tendenciosa, enquanto o restante ou aplaude o espetáculo oficial ou faz vista grossa. Por isso, a nação de 29 milhões recebeu com preocupação a notícia da venda do jornal El Universal, diário centenário e um dos pilares da imprensa independente venezuelana.
Oficialmente, foi apenas um negócio. O jornal caraquenho sangrava dinheiro e foi arrematado por investidores da Espanha. De fato, o jornal morreu asfixiado, vítima do garrote do governo Nicolás Maduro, que lhe cortava bobinas de papel importado.
Do comprador, pouco se sabe. A empresa surgiu na Espanha em 2013 no setor imobiliário e, meses depois, renasceu empreendedora de mídia. Alega ter US$1 bilhão na cartola. Para presidir o jornal, indicou o empresário Jesús Abreu, notório apenas por ser irmão do maestro José Antonio Abreu, criador de uma escola de música para jovens pobres. Jesús nega, mas a mídia independente venezuelana – a parcela que ainda resiste – enxerga na troca a mão invisível de Maduro, o acossado herdeiro de Hugo Chávez, que tem todas as pretensões do seu antecessor e nada de seu cacife político.
Como Chávez, Maduro não engole desaforo. Mas o mentor era habilidoso o suficiente para evitar colisão frontal com desafetos. Como todo autocrata do século 21 que se preze, Chávez preferia manipular a democracia a esmagá-la. Nos seus 14 anos no poder, os venezuelanos foram às urnas em eleições livres e razoavelmente limpas, mas o governo fez as regras e o mapa eleitoral. As cortes deliberavam, mas os juízes eram chavistas. O Legislativo legislava, geralmente sob ordens de Miraflores.
Carisma e brado
A receita encontrou aprendizes. No Equador, na Bolívia e na Nicarágua, caudilhos se elegeram pelo voto popular e mobilizaram suas maiorias para centralizar o poder, domesticar a Justiça e intimidar a crítica. Mas ninguém adestrou a imprensa como Chávez. A oposição venezuelana sabia que atrás do sorriso de Chávez havia a bota do comandante. Manter a aparência da democracia e um simulacro de liberdade de expressão eram cruciais para legitimar o chavismo.
Em vez de usar censura bruta, Chávez sabotava a mídia com processos e multas, por ofensas reais ou imaginárias. Televisões e rádios que não faziam seu jogo tiveram concessões canceladas – 34 estações de rádio foram extintas em um só dia e, em 2007, o governo simplesmente deixou de renovar a licença para a maior rede de televisão do país, a RCTV. E, para divulgar a boa nova, Chávez construiu sua própria rede: 10 TVs e 100 rádios. Quando queria mais, convocava rede nacional para rezar, cantar, passar descompostura ou descortinar novidades.
Maduro até que tenta. Nos seus primeiros 12 meses, apareceu 147 vezes na TV e falou durante quase 200 horas. Quando não falava, armava. Ao cortar o papel importado, Maduro matou de inanição o Universal. Dois outros gigantes de mídia independente, a Globovisión e a Cadena Capriles, também definharam e foram vendidos após o cerco oficial.
Mesmo com a mídia na mão, Maduro não consegue sair bem na foto. Para domar a inflação, decretou congelamento de preços, causou um motim de consumidores em horário nobre, empobreceu a rede elétrica e nacionalizou o apagão. Os bandidos agradeceram o breu e tornaram Caracas uma batalha campal. A solução de Maduro: vetar noticiar o crime. Violência, escassez e repressão também tingiram a era de Chávez, mas, com seu carisma e brado, o beato bolivariano conseguia vender o sacrifício. Mas Chávez se foi e hoje sobraram apenas as cadeias nacionais.
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Mac Margolis é colunista do Estado de S.Paulo e chefe da sucursal brasileira do portal de notícias ‘Vocativ’