A vertiginosa expansão dos meios de comunicação, catapultada pela internet e congêneres digitais que fizeram com que o mundo coubesse no bolso ou na palma da mão, paradoxalmente não facilitou a vida da mídia no intuito de preservar o seu maior patrimônio: a credibilidade. É notório que a grande influência e ascendência que, sem dúvida, os mass media exercem no maleável padrão comportamental de hoje em dia estão longe de indicar que a recíproca seja verdadeira, ou seja, que resultem numa desejável contrapartida na forma de apreço e confiabilidade.
Não se trata de um fenômeno isolado ou passageiro. Mesmo nas camadas menos aquinhoadas, supostamente alienadas e sem muita noção das coisas, viceja a percepção dos valores fúteis e deletérios que norteiam os veículos de massa em geral, que não obstante o emperequetamento e requinte tecnológico, não gozam de boa reputação, mas nem por isso perdem o rebolado, como se dizia antigamente.
Várias causas que não vêm ao caso abordar apontam para a perpetuação deste estigma, similar à mitológica maldição de Sísifo, que condena a imprensa a repetir sistematicamente a mesma tarefa sem direito a reconhecimento ou poder dormir sobre os louros da vitória. A principal, sem dúvida, o desvirtuamento da prática jornalista por força de imposições comerciais que emasculam as redações de hoje em dia.
Exemplos desse ambíguo e malsão convívio saltam à vista no próprio rescaldo da ainda fresca e badalada Copa do Mundo, como a elucidativa e emblemática entrevista com o controvertido narrador Galvão Bueno, publicada no site da revista Veja na semana passada, na qual rebate as críticas sobre a comentada leniência da Globo em relação à campanha da seleção e, em particular, ao trabalho do técnico Luiz Felipe Scolari. Respostas que além de não corresponderem à veracidade dos fatos, dão uma ideia exata da essência do trabalho jornalístico que é impingido ao público hoje em dia, baseado na maquiagem e manipulação dos fatos.
Hino cantado à capela abalou o time
De contrato recém-renovado até 2018, pelo que foi divulgado pela nababesca quantia – pasmem – de R$ 5 milhões mensais, o maior salário da TV brasileira, Galvão personifica que o que há de melhor e pior na telinha. Narrador competente, principalmente de automobilismo, paixão herdada pelos filhos Cacá e Popó Bueno, por sinal entre os mais promissores na categoria stock car, há décadas transfere ao futebol brasileiro o peso de sua enorme e nem sempre benfazeja influência. Como se viu claramente nesta Copa, em que teve participação significativa no fiasco de nossa seleção, ao mascarar suas limitações e sua deficiente preparação com o oba-oba abusivo e nauseabundo que permeou as transmissões e os boletins diários para o JN, em parceria com a não menos faceira apresentadora Patrícia Poeta.
Ópera bufa de cuja coautoria e participação tenta se esgueirar esgrimindo desculpas contraditórias e canhestras, que carecem de um mínimo de honestidade e humildade para que possam ser levadas a sério. O que obviamente não faz qualquer diferença para quem tem o raro privilégio de sempre ter a palavra final, graças ao cargo e aos poderes plenipotenciários outorgados pela rede de TV que faz e acontece no país. Posição que lhe permite zombar impunemente da opinião pública mediante a mal ajambrada reconfiguração que fez de sua performance na Copa, bem como das próprias imagens ainda recentes na memória de todos, atribuindo tudo as incumbências de mestre de cerimônias do espetáculo. Coisas que soam como verdadeiro escárnio, cuja essência, para quem não leu, resume-se ao prosaico e relutante mea culpa que segue abaixo.
>> “As pessoas esquecem que estou lá para animar a brincadeira”.
>> “Sou um vendedor de sonhos, que anda no fio da navalha”.
>> “De um lado tem a emoção que você tem de vender e, do outro, a realidade dos fatos”.
>> “Desde o primeiro jogo fizemos críticas (referindo-se aos comentaristas Casagrande e Ronaldo). Eu disse, em algum momento, que o trabalho de Felipão era coerente, mas em momento algum elogiamos a seleção e nem falamos que era uma maravilha”.
>> “Criou-se um clima um pouco exagerado em cima desta Copa no Brasil. Acho que isso tem a ver com essa coisa do hino cantado à capela. Nas primeiras vezes que ouvi fiquei com lágrimas nos olhos, mas não precisava ser algo levado a um nível tão extremo. Tenho minhas dúvidas se isso não abalou o emocional do time.”
Casca grossa
Difícil dizer o que é mais lamentável, se o descaramento daquele que foi o grande fiador do maior vexame da história de nosso futebol, ou o fato de a bomba só ter estourado para o lado do técnico Felipão e seus colaboradores – exceto Galo, o treinador da sub-20 e peixe do presidente José Maria Marin, preservado apesar do pífio papel que exerceu como olheiro. Enquanto o bronzeado Galvão já reassumia seu posto de narrador oficial da Fórmula 1, transmitindo o Grande Prêmio da Alemanha como se nada tivesse acontecido, a dupla Gilmar Rinaldi e Dunga era apresentada sem pompa e cerimônia na última terça-feira pela inabalável cúpula da CBF, como se a simples mudança de comando na seleção tenha o dom mágico de reverter o sombrio cenário de nosso futebol.
“Não sou um vendedor de sonhos”, pontuou a certa altura o recém-empossado treinador famoso pelos maus bofes, sem esclarecer se por licença poética ou alfinetando o comandante-em-chefe da poderosa emissora contra qual bateu de frente na Copa de 2010. De qualquer forma, ponto para ele, face à virtual ruptura com arranjos extra-campo que representa o seu inesperado retorno à seleção. Algo duvidoso, por exemplo, caso o escolhido fosse Tite, que tinha a preferência da maioria de acordo com as pesquisas, e ainda mais chegado a confabulações extracurriculares do que o próprio Felipão.
A menos que tenha mudado muito, o que parece improvável, ou exagere na dose extra de paciência e tolerância que prometeu conceder nessa sua segunda experiência no cargo, Dunga sempre se mostrou avesso aos sofismas e engendrações da mídia. E ainda que provavelmente por conta disso tenha sido dispensado após a, para muitos, injusta eliminação pela Holanda, em decorrência de um lance infeliz de Julio Cesar e – aí talvez o equívoco fatal – de seu protegido, o volante Felipe Melo, sua recente e turbulenta passagem de seis meses pelo Internacional, indica que não. Afora a declarada disposição de ser mais tolerante e flexível, e que não foi suficiente para desarmar os espíritos de boa parte da imprensa esportiva, o discurso é praticamente o mesmo de cinco anos atrás, ou seja, de valorização do conjunto, da disciplina e comprometimento com a seleção.
Engolida a seco por uma imprensa esportiva que gravita entre a impotência e a parcimônia para interferir diretamente nos rumos de nosso futebol, a dupla Dunga e Gilmar, não obstante ter sido escolhida à revelia da preferência da maioria, larga com a vantagem de ter a casca grossa que as circunstâncias exigem. Vantagem que pode rapidamente se transformar em desvantagem caso os resultados não apareçam de imediato, pois com a predisposição às críticas e cobranças exacerbada pelo vexatório papel na Copa, não há vendedor de sonhos capaz de dourar uma pílula com potencial de placebo.
Por quem os sinos dobram
Ainda mais com a premente reciclagem que se impõe a não menos bitolada imprensa esportiva de um modo geral, e não só a emissora líder de audiência e seu onipotente porta-voz, que diz ter aprendido com Armando Nogueira, o notável cronista e ex-chefe de jornalismo da casa, já falecido, a regra básica do ofício: elogiar sem bajular e criticar sem ofender. De fato, se há algo que explica o inabalável prestígio mantido ao longo de quatro décadas pelo narrador, além da inegável competência na arte da comunicação, é o timing aperfeiçoado em tanto tempo de estrada. O velho e manjado expediente do morde e assopra que, considerando a enorme visibilidade e repercussão inerente ao cargo, não é para qualquer um.
Timing que, de qualquer forma, e por mais que procure tirar o corpo fora, desta vez falhou grotescamente ao não detectar em tempo hábil as limitações da seleção, deixando-se levar como um principiante pela empolgação enganosa suscitada, ironicamente, pela cobertura apelativa encetada pela própria Globo. Equívocos que atribui a tal vocação de vendedor de sonhos, no fundo mera conversa fiada para escamotear rasgos de prepotência e imposições editoriais que se sobrepõem ao dever profissional.
“Houve um exagero também na contusão do Neymar, aquela coisa meio fúnebre, de levar a camisa dele no jogo contra a Alemanha”, concedeu, afinal, mas sem mencionar que a Globo foi a que mais dramatizou a situação, explorando exaustivamente o quase desespero dos integrantes da seleção pela perda do craque. Sem falar do estapafúrdio desabafo do apresentador Luciano Huck, que comparou o episódio ao atentado terrorista de 11 de setembro de 2001 em Nova York.
Jactâncias e excrescências que podem não abalar o prestígio de nomes que se eternizam no métier graças ao status de celebridade que ostentam, mas que para a mídia e a própria imprensa institucional, a exemplo do nefasto jornalismo engajado, só levam ao desvirtuamento de suas funções mais nobres e ao esvaziamento de seu papel de formador de opinião.
E mais: além de servir de bode expiatório para as tradicionais tramoias e mazelas políticas, como é feitio do ex-presidente Lula e hostes petistas, abrem espaço para que grupelhos mais radicais como os Black Bloc tentem resolver as coisas na base da baderna, apelando para táticas terroristas e de guerrilha urbana como forme de protesto e retaliação. No fundo, um recurso extremo para suprir a falta de atitude e de respaldo da mídia e seus embusteiros de carteirinha, regiamente remunerados para prover a plebe rude da proverbial cota de pão e circo. Com os valores frívolos que imperam na era do espetáculo, poucos parecem efetivamente incomodados com esse precário estado de coisas, e com disposição para contestações e questionamentos que se constituem em prerrogativas de cidadania e civismo muito mais eficazes, por exemplo, que as toscas manifestações de patriotismo emanadas pela cantoria do hino nacional a capela durante a Copa.
Os cordatos e mansos de espírito que segundo as Escrituras herdarão o paraíso, podem conviver e até aceitar bovinamente o culto à trapaça e as empulhações de toda espécie desses tempos amorais. O problema é que amanhã ou depois pode ser tarde para indagar, como no epílogo do belíssimo livro de Ernest Hemingway, por quem os sinos dobram e se tocar que é por quem já morreu e ainda não sabe. Ou seja, os inocentes que não sabem de nada ou pobres diabos que não se importam de viver sendo ludibriados.
Vítimas perfeitas dos impostores e vendedores de sonhos que assumidamente manipulam fatos e emoções como se fossem simples brinquedos.
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Ivan Berger é jornalista