Monday, 23 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

O meu Jo@o Ub@ldo

Já nos conhecíamos de referências cruzadas. Cruzadas principalmente por seu amigo de colégio e jornalismo em Salvador, Glauber Rocha, que algumas vezes me dissera: “Você e João Ubaldo têm muita coisa em comum”. Tínhamos. Mas só fomos verificar isso pra valer após nosso primeiro aperto de mão, patrocinado, em julho de 1979, pela socióloga baiana Zahidé Machado Neto, em noitada que contou ainda com a presença do artista plástico Calasans Neto. Zahidé, íntima de toda a intelectualidade baiana, se fizera amiga de Ubaldo por intermédio do marido, Antônio Luís Machado Neto, também mestre de Glauber e uma das glórias do Direito e da Sociologia da Bahia. Daquele encontro, que horror, sobrou apenas o locutor que vos fala.

Por falar em fala, tive um coup de foudre pela voz de barítono de Ubaldo. Quem não teve? Mas só eu, creio, ousei lhe propor que gravasse a mensagem de minha secretária eletrônica; ele topou, mas nunca implementamos a combinação. A propósito, uma das coisas que tínhamos em comum era o fascínio por Ramos Calhelha, locutor de trailers e comerciais de rádio e TV dos anos 1950, voz cálida que nos trazia de volta a adolescência perdida.

Não obstante, Ubaldo detestava gastar sua voz ao telefone. Era outra coisa que tínhamos em comum: horror a telefone. Quando, porém, o tamanho da mensagem se equiparava à preguiça de digitá-la, apelava para o correio de voz – e aí era uma festa pros meus ouvidos. Abriu exceção, parcimoniosa, diga-se, ao Skype, para conversar de graça com a filha que vive na Alemanha, mas ao celular jamais se dobrou. “Deixo de falar com quem me der um”, ameaçou mais de uma vez, oralmente e por escrito.

Outras afinidades: o filme Férias de Amor (Picnic), fetiche de nossa geração; Doris Day cantando “Ten Cents a Dance” em Ama-me ou Esquece-me; a leitura de obituários; o gosto por curiosidades linguísticas; o horror a púbis glabros (“sou um pentelhista militante”). Já a fixação por hora certa era mania exclusiva – dele e seu fraternal cúmplice em germanidades e ourivesaria digital, Rubem Fonseca. Ubaldo perdeu a conta de quantas vezes assistiu a Picnic na companhia de Glauber. “Era o filme favorito dele”, confidenciou-me em nosso tête-à-tête inaugural, surpreendente revelação posteriormente reiterada em mensagens eletrônicas.

Trocávamos e-mails com bastante frequência, estimulados por fatos momentosos, miudezas do cotidiano, acessos de nostalgia. E por curiosidades que oscilavam entre o gratuito e o esotérico. Por exemplo: “Você é homem de uma woolf, quando está escrevendo um livro, ou é simenônico?”. Adorava abobrinhas (inocentes ou fesceninas), compartilhar fotos de antigas sereias de Hollywood, pixotadas futebolísticas, conversas secretas de ex-presidentes americanos, velhas comédias italianas e até programas de voo simulado. Constantemente a par das novidades da informática, foi o mais diligente piloto de provas de antivírus que conheci. Levamos mais de uma semana discutindo a vulnerabilidade do Internet Explorer e as limitações do Google Desktop. “Updates dão mais trabalho do que seis famílias”, repetia sempre, sem se preocupar em traduzir update por atualização, como era de se esperar que fizesse, tamanho o seu zelo pelo vernáculo. Site, para ele, era sítio e online, em linha. Levei dele um esbregue quando numa troca de dicas eletrônicas empreguei, irrefletidamente, o verbo desabilitar. “Você não desabilitou nada no Outlook, você inabilitou”, fulminou na mensagem de volta. “Ninguém é desábil em português, mas inábil”, arrematou.

Novo romance

Foi de episódios como esse que nasceu o personagem Ubaldo, o Intelectual Kickboxer, inventado pela turma do Casseta e encarnado num vídeo pelo próprio escritor. Tem no YouTube, não percam: Ubaldo fantasiado de lutador marcial, distribuindo golpes em meliantes que acima de tudo assaltam e agridem a língua. Nenhum outro acadêmico teria tal desprendimento.

Não se envergonhava de ser “um mestiço neurastênico do litoral”, politicamente incorreto e movido a obsessões e paranoias conspiratórias. Fez campanha sistemática contra urnas eletrônicas (a seu ver, mais manipuláveis do que o voto de cabresto), quotas raciais e o que mais se lhe afigurasse cretino e insultuoso. “Não sei o que é raça, nem sei a que raça pertenço e tenho o direito de ser preto, amarelo ou azul – sou é cidadão brasileiro e não me encontro na Alemanha nazista”, desabafou num e-mail, poucos anos atrás.

Como não sou de frequentar botecos, nunca lhe fiz companhia no Bar Tio Sam, seu nicho no Leblon. Nossos encontros se davam em reuniões sociais e, ao menos uma vez por mês, no restaurante do Clube Marimbás, onde uma confraria de folgazões de precário futuro, coordenada pelo psicanalista Luiz Alberto Py, se reúne para encher a cara, gratificar o estômago e se divertir com as histórias e tiradas de Ubaldo. Seus confrades marimbentos o viam mais amiúde num semestre do que seus pares na Academia em dois ou três anos de chás com bolinhos.

Notável contador de casos, Ubaldo, disseram-me, fazia bonito até em alemão, com sua voz Sturm und Drang. Da minha Ubaldiana separei duas histórias. Uma sobre a chegada da televisão à Bahia e outra, mais contemporânea, sobre a proverbial preguiça baiana.

Primeira: no início dos anos 1950, os lares mais abonados de Salvador já dispunham de um televisor na sala, à espera das primeiras imagens transmitidas pela pioneira TV Tupi. Seu único sinal de vida era o logotipo da emissora, com o desenho de um curumim, mascote do império midiático de Assis Chateaubriand, a ondular ininterruptamente no meio da tela. Mesmerizado por aquela imagem estática e na esperança de que a qualquer momento algo parecido com um programa de televisão entrasse no ar, o pai de Ubaldo passava horas de olhos grudados no televisor. Quando precisava ir ao banheiro, ordenava ao filho: “João, não saia daqui. Se o índio mexer, você me chama”.

Segunda: na varanda da casa de Jorge Amado, em Salvador, Dorival Caymmi, refestelado numa rede, pergunta ao anfitrião: “Jorge, estou com a braguilha aberta?” Deitado em outra rede, Jorge espia e responde: “Tá não”. Caymmi: “Ah, então vou deixar pra mijar amanhã”.

Claro que narradas por Ubaldo essas histórias tinham outro sabor.

Impedido de comparecer ao mais recente jantar da confraria do Marimbás, na noite do dia 15, perdi a chance de curti-lo ao vivo pela última vez. Três dias depois, vocês sabem o que aconteceu. Soube pelos outros comensais que ele estava contentíssimo com o novo romance em andamento, mas um tanto deprimido com o futuro do País, para não dizer do mundo como um todo. Ubaldo sofria do que os alemães chamam de Weltschmerz. Quem não, na atual conjuntura?

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Sérgio Augusto é colunista do Estado de S.Paulo