Nada tenho contra os críticos, mas raramente concordo com eles. O exemplo mais recente é o lugar comum a respeito de Ariano Suassuna. É quase unânime a classificação de “regionalista”, quando se referem ao autor falecido nesta semana [passada].
Quem lê sua obra descobre a influência do Dom Quixote na feitura de seus personagens e nas suas tramas. Oliveira Lima considerou “O Triste Fim de Policarpo Quaresma” como paródia da obra de Cervantes. Tem razão quando entra no espírito do cavalheiro da Triste Figura, mas não no espaço onde se desenrolam suas aventuras.
Ariano buscou a essência da alma e da linguagem do povo que ele conheceu. Misturou sua erudição com o falar e a sabedoria do homem nordestino. Como Cervantes, no meio de sua prosa admirável, colocou versos e poemas muitas vezes cortando o desenvolvimento de suas histórias. Fez uma genial paródia dos romances da cavalaria medieval.
Linguagem saborosa
Ariano buscou casos e figuras que conheceu. Sempre dizia que nada tinha inventado. Por mais absurdas que sejam suas histórias, ele nunca perde a verdade do homem. Fabulosa a sua capacidade de extrair de uma gente simples uma reflexão universal. Nunca viu um moinho se transformar no vilão que o perseguia. Para os seus personagens, um moinho é um moinho, eles não se metabolizam em outras coisas a não ser o que são, com a sabedoria própria do homem sem a corrupção da lógica acadêmica e da ciência oficial.
Criou um louco dotado de lucidez, expressa numa loucura lúcida, tanto na visão do mundo como na sabedoria instintiva do homem em seu estágio de inocência e perfídia.
Ao contrário de Guimarães Rosa, que criou uma linguagem saborosa e uma técnica inédita para contar uma história, Ariano, seguindo o modelo das alucinações de Dom Quixote, criou um universo que atravessará o tempo e o modo.
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Carlos Heitor Cony é colunista da Folha de S.Paulo