Elis Regina Carvalho Costa morreu aos 36 anos, mantendo a revolução no meio musical brasileiro que acompanhou a vida da cantora considerada por muitos a maior do Brasil. Mas desta vez o motivo era outro. O laudo médico divulgado na sua morte incluía intoxicação por álcool e cocaína, mistura fatal consumida pela cantora sozinha no quarto de dormir. O namorado, o advogado Samuel Mac Dowell de Figueiredo, arrombou de manhã a porta do apartamento da rua Melo Alves, em São Paulo, e levou a cantora nos braços para o hospital, atraindo a curiosidade dos 25 mil fãs que consumiram as quatro milhões de cópias dos seus 27 LPs, 14 compactos e seis duplos. Não se falava em outra coisa.
A “Pimentinha” fazia barulho até depois da morte.
Foi cocaína? “A cantora não consumia droga”, dizia o namorado. Mas seu ensaiador Lennie Dale foi preso em 71 com um saco de maconha, as matérias apontavam… Não, o laudo foi vingança do legista Harry Shibata pelo processo que Mac Dowell, entre vários advogados, moveu contra a União pelo “suicídio” do jornalista Vladimir Herzog, assinado por Shibata sem ver o corpo, afirmava Edu Lobo. O ex-namorado Guilherme Arantes declarou ter visto Elis consumindo droga, e irritou os amigos. Ninguém tinha a verdade, mas o meio artístico revoltou-se mesmo com a capa da revista Veja que trazia o título “O Amargo Brilho do Pó”e várias páginas com as contradições colhidas pelo desaparecimento da cantora depois de 18 anos de sucesso, entre 1964 e 1982.
Personagens caricatos
Elis foi casada duas vezes, a primeira com o compositor e produtor musical Ronaldo Bôscoli, com quem teve o filho João, que tinha 11 anos na morte da mãe. Elis impedia o encontro dos dois. Depois da separação pelas infidelidades constantes do marido – ele já havia traído Nara Leão com a amiga Maysa Monjardim, Nara se afastou dos dois –, casou-se com o pianista e arranjador Cesar Camargo Mariano, pai de seus outros dois filhos, Pedro e Maria Rita. Dele, Elis se separou dizendo que era “um explorador”.
Elis não tinha papas na língua, mas o musical Elis, a Musical, escrito por Nelson Motta e Patrícia Andrade e dirigido por Dennis Carvalho, revela, para quem nasceu depois de 1982, uma Elis despirocada e um Ronaldo Bôscoli (Tuca Andrade) que, na peça, parece competir com ela por quem dizia mais palavrões por segundo. Um Cesar Camargo Mariano (Claudio Lins) encolhido. Paulo Francis (Germano Melo), Henfil (Peter Boos), Tom Jobim (Leo Diniz) e Lennie Dale (Danilo Timm) são tão caricatos que despersonalizam as figuras reais por quem as conheceu. Provocam risos, foram construídos para isso, assim como a entrevistadora Marília Gabriela adentrando o rosto do entrevistado. Mas Mac Dowell, que vivia a fase mais feliz de Elis, nem foi mencionado.
Para quem a conheceu, não dá para comparar a voz de “diamantes puros, frios e cortantes” com respingos de bel canto de Elis com a da atriz Laila Garin, que faz seu papel – embora, para quem não a conheceu, valha.
Silêncio sobre a morte
É um musical brasileiro, e isso é bom depois da onda de importados, mas a leveza e superficialidade deixa muito a dever à Broadway e ao londrino West End. Faltam recursos visuais, mas isso se perdoa. O que não se perdoa é não ser mencionado o atribulado fim da cantora num evidente silêncio dos artistas e da família para preservar a biografia de Elis – que não se mancharia em nada se a verdade fosse contada. Pelo contrário, daria um peso à cantora, que era insegura e mal conseguia carregar o sucesso em seu corpinho de gaúcha de 1m53, desembarcado no Rio em 1963 com míseros 36 mil cruzeiros no bolso.
Até o programa em forma de LP peca; a morte de Elis é mencionada en passant numa frase: “Pimentinha, como foi carinhosamente chamada por Vinicius de Moraes, nos deixou em janeiro de 1982”.
Agora, a vida de Carmem Miranda,Tim Maia, Cazuza, Cássia Eller foi para os palcos, mas nossos musicais, embora concorridíssimos, estão longe de produzir espetáculos com textos originais e músicas compostas especialmente para eles, que em Nova York e Londres viram sucessos imediatos. A gente chega lá. O que não dá é para desvirtuar a verdade, a polêmica, os dois lados que enriquecem a vida humana.
Maldita cocaína
O musical Maldita Cocaína, por exemplo, levado a Lisboa em 1993 por Felipe la Féria, inspirou-se no tango de Cruz e Souza (“Maldita cocaína, que roubaste o meu amante…”) que só chegou a ser cantado três noites pela Marlene Dietrich portuguesa, Brunilde Judice, na revista Charivari, levada no próprio teatro Politeama em 1929. Depois, foi censurado. Entre o fim da Primeira Guerra e a subida de Salazar ao poder, Lisboa viveu uma explosão de luxúria, permissividade e pecado no maior cabaré da época, instalado num palácio que a ditadura logo transformou no SNI local. Enquanto durou, o Maxime pôde contar sozinho a história dos loucos anos 20 portugueses, vivida entre os veludos vemelhos das poltronas, doutores de ternos de chiffon forrados de crepe da China, cocottes de colar de pérola enrolado nos cabelos à garçonne, passadores de droga, malandros, boêmios.
É a decadência e o luxo do Maxime que la Féria recriou no Politeama na maior produção lusitana de todos os tempos – ultrapassou os US$ 2 milhões na época. Esse motor da vida lisboeta, mal comparando, foi o Beco das Garrafas recriado no musical Elis, sem glamour e sem o papel de combustão da vida carioca entre 1959 e 60, reduto dos músicos da Bossa Nova em 1957. A travessa sem saída da rua Duvivier, em Copacabana, abrigava casas noturnas, e os moradores, irritados com a bagunça e alegria até altas horas, jogavam garrafas nos frequentadores dos bares Ma Griffe, Bacará, Little Club, Bottle’s.
Elis cantou ali, e também Dóris Monteiro, Sylvia Telles, Wilson Simonal, e se apresentaram Sergio Mendes, Baden Powell, Dom Um Romão, Airto Moreira, Wilson das Neves, além de Ronaldo Bôscoli e Miele, presentes no show. Ninguém está reclamando da falta de raios laser, cenários múltiplos e rápidos, telões.
Mitos
Mas a verdade não envergonha ninguém. É incontável o número de cantores internacionais que morreram num descuido da mistura fatal de álcool e drogas: Whitney Houston, Judy Garland, Amy Winehouse… E pelo menos Billie Holiday, Jimi Hendrix, Janis Joplin, Jim Morrison, Elvis Presley, Edith Piaf viraram musical ou filme com a história “toda” revelada. Nem por isso deixaram de ser mitos, pelo contrário.
O próprio Nelson Motta contou com graça no seu delicioso depoimento ao Museu da Imagem e do Som que o personagem de Jonas Torres no seriado de TV Armação Ilimitada, que ele ajudou a criar nos anos 80, foi inspirado na maconha. “Ele se chamaria Bagana. Mas reclamaram e a gente mudou para Bacana”. Contou ainda que um baseado foi o motivo de sua quase prisão na década de 70. “O advogado pagou dois mil dólares aos caras. Foi o baseado mais caro da minha vida”.
A verdade não envergonha Nelsinho, pelo contrário. Também não envergonharia Elis.
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Norma Couri é jornalista