“Primavera e outono“, escrito por Gerard Manley Hopkins, em setembro de 1880, e recolhido em seu livro Poemas e prosa, é o poema mais triste já escrito. Tenho me emocionado com outros poemas, incluindo “Rock me mercy“, de Yusef Komunyakaa, “Saying goodbye to very young children“, de John Updike, e “Aubade ending with the death of a mosquito“, de Tarfia Faizullah. Existem inumeráveis outros poemas, publicados e inéditos, vistos e nunca vistos, que poderiam deixar cicatrizes em meu coração. Todavia, em 15 linhas e 94 palavras, Hopkins construiu um sentimento melancólico e elegíaco que mexe comigo ainda hoje, centenas de leituras depois [existem ao menos três versões em português para este poema, a saber: aqui, em tradução de Alípio Correia de França Neto; aqui, em tradução de Aíla de Oliveira Gomes; e aqui, em tradução de Luís Gonçales Bueno de Camargo. Em 2010, a versão original foi musicada por Natalie Merchant (ver aqui)].
O poema evoca uma “criança” [“a young child”], Margaret, que é a destinatária silenciosa do lamento do narrador adulto. Hopkins compôs o poema enquanto servia como padre de paróquia, em Lydiate, Inglaterra, e ocasionalmente celebrava missas em Rose Hill, uma propriedade particular. Ele não foi um pregador bem-sucedido e, desprovido de “força de trabalho”, logo deixou o serviço pastoral. Lecionou latim e grego, em nível intermediário, durante três anos, tornando-se então chefe de Cultura Clássica, no Colégio Universitário, em Dublin. Teve poucas alegrias em todos esses afazeres profissionais e morreu de febre tifoide, em 8 de junho de 1889. Seus poemas só foram publicados em 1918, pelo seu amigo e poeta laureado britânico Robert Bridges.
Margaret, are you grieving
Over Goldengrove unleaving?
Profundamente melancólico
Hopkins, do nosso ponto de vista tardio e imperfeito, foi um homem deprimido que amava a Deus. Muito tem sido escrito a respeito da tensão entre o seu eu artístico e o ascético; mesmo esse paradoxo, contudo, é fantasioso. Os exercícios espirituais, a pedra angular da formação jesuítica de Hopkins, não visam anular a personalidade de ninguém, apenas concentrar a mente. Seus versos poéticos vibram de acordo com a paixão de um homem de fé, e devem ser lidos sob essa ótica. Mas ele também foi um homem profundamente melancólico.
O conceito de melancolia foi essencial para o ensaísta Michel de Montaigne, cujas obras, em suas associações e ritmos, eram poéticas. Em Montaigne e a melancolia: A sabedoria dos ensaios [em português, ver aqui], M. A. Screech argumenta que essa melancolia, considerada então um dos quatro humores do corpo (bílis negra), resultou tanto em tristeza como em êxtase arrebatador. O êxtase do sexo, mas também o êxtase das experiências místicas, muito se parece com os ânimos polarizados nos poemas de Hopkins. Montaigne estaria mais próximo do humor de Cícero (“Aristóteles disse que todos os gênios são melancólicos. Isso me deixa menos apreensivo por ser aparvalhado.”) do que das sombras de Hopkins, mas eles compartilham da propensão para explorar a tristeza.
“Primavera e outono” é dirigido a Margaret. O seu nome é mencionado no primeiro e no último verso, fechando o poema. Hopkins, como outros poetas, muitas vezes alcança esse envolvimento de palavras e ideias por meio da forma poética e da rima, mas a repetição do seu nome é um lembrete de que a ela está sendo dado um conselho. Ela está triste porque as árvores estão perdendo folhas. Nós talvez quiséssemos dizer a ela para se refazer, não desperdiçando suas lágrimas com uma coisa tão trivial. Momentaneamente, porém, o narrador conserva o amor dela inflexível e sincero.
Leaves like the things of man, you
With your fresh thoughts care for, can you?
Nos primeiros quatro versos, Hopkins usa variantes de “você” quatro vezes, o refrão parece um toque consolador no ombro da menina. “Unleaving” [desfolhando] vai dar em “leaves” [folhas] [eis minha sugestão para uma versão adicional em português: “Primavera e outono (A uma criança)”, de Gerard Manley Hopkins: “Margaret, você está sofrendo/ Pelo Arvoredo Dourado desfolhando?/ Folhas, como as coisas do homem, a você/ Com suas ideias puras, importam – não?/ Ah, mas o coração envelhece/ E diante dessas visões arrefece/ Pouco a pouco, não resta um lamento/ Embora mundos de bosques descamisados persistam;/ E, contudo, você irá chorar e saberá a razão./ O nome, criança, não importa mais:/ Primaveras de pesar seguem iguais./ A boca não expressou, nem a mente,/ O que ouve o coração, o espírito pressente:/ Eis a ruína que com o homem nasce,/ Eis, Margaret, o que a aflige.”]. Uma pergunta é seguida por outra, embora a segunda esteja mais dirigida ao leitor, que seria o verdadeiro sujeito do poema.
Esse questionamento ao leitor é a razão inicial pela qual o poema de Hopkins continua comigo. Acho que a melhor poesia é um modo de interrogar a si próprio. Posso passar boa parte do dia ouvindo a linguagem esvaziada pelos políticos e transformada em expediente pela publicidade. Mas rezo para que a poesia ampare a linguagem. Não acho que a linguagem sempre precise ser ressuscitada de uma maneira melancólica. Michael Robbins beijoca a linguagem poética de volta à vida por intermédio do humor (I am small,/I contain platitudes.), mas a melancolia é particularmente apropriada a uma poesia da permanência.
Ah! as the heart grows older
It will come to such sights colder
By and by, nor spare a sigh
Though worlds of wanwood leafmeal lie;
And yet you wíll weep and know why.
A “ruína” humana em 15 versos
A poesia nos torna crianças de novo. Isso poderia soar incompatível com a imagem estereotipada de jovens estudantes enfileirados, procurando por significados que os poetas nunca cogitaram, no entanto muitas de nossas mais antigas e profundas experiências com a linguagem se deram quando elas foram proferidas de um modo poético. O ponto central e doloroso de “Primavera e outono” é que Margaret é você e sou eu. Ela é as minhas filhas gêmeas, as quais, com pouco mais de um ano de idade, falam mais por meio de gritos do que por palavras. Isso me faz pensar na complexidade intelectual de ser pai ou mãe: amando nossos filhos, estamos também, em certa medida, amando a nós mesmos. Não quero que minhas filhas se sintam tristes algum dia. É um anseio irreal, pois “mundos de bosques descamisados persist[e]m” [“worlds of wanwood leafmeal lie”]. Esse anseio, ainda que frágil e ingênuo, é, todavia, bastante necessário.
O narrador de “Primavera e outono” quer que Margaret saiba – quer que nós saibamos – que a melancolia é, em última análise, a consciência de nossa mortalidade. Poemas a respeito da morte são numerosos, mas a cuidadosa construção de Hopkins permitiu ao seu canto rechaçar outros versos. A segunda pessoa, quando bem usada, é um espelho poético maravilhoso.
Now no matter, child, the name:
Sorrow’s springs are the same.
Nor mouth had, no nor mind, expressed
What heart heard of, ghost guessed
A brevidade e a tendência ao paradoxo por meio da interiorização do conteúdo tornam a poesia o veículo artístico perfeito para a melancolia. Passamos os nossos dias vivendo e falando em prosa. Poesia é câmbio manual. Poesia é um carro velho remoçado. Para ler um poema, devemos ocupar outro espaço, mais monacal. Nesse sentido, a melancolia é um excelente estado de espírito para a poesia, visto que a sensação é uma chacoalhada emocional. Romances me machucam. Histórias perfuram minha pele cética. Ensaios me fazem repensar o mundo. Mas um poema melancólico me destroça, me empurra para outro espaço emocional. Alarga o meu eu. A brevidade de “Primavera e outono” significa que a questão, ainda que curta, é intensa. Saio da sala e, embora as palavras retornem como sussurros, regresso à vida. Obras extensas me fazem submergir no mundo delas, de modo que a volta ao mundo real é mais difícil. “Primavera e outono” é, no entanto, suficientemente pequena, cabendo dentro do meu bolso e debaixo da minha língua. Seus ritmos suaves me acalentam, e acolho a inevitabilidade da sua narrativa.
It is the blight man was born for,
It is Margaret you mourn for
Algumas interpretações de “Primavera e outono” criticam a tendência do orador a não se emocionar, assim como outros adultos de corações “frios”, com a natureza. Uma interpretação ambientalista seria compatível com Hopkins, para quem o mundo natural inteiro estaria “impregnado com a grandeza de Deus”. Hopkins propositalmente elaborou um narrador imperfeito, alguém que parece farto do mundo, magoado. Um orador que está propenso a revelar o fim da inocência.
Um poema bem-arranjado nos faz lembrar que as nossas existências, em termos cósmicos, são tão efêmeras como esses 15 versos. Os versos de “Primavera e outono” se amontoam em direção à dura conclusão de que a nossa tristeza mais verdadeira é o reconhecimento de que o que dói em nós não é a queda das folhas, mas são as nossas próprias quedas, públicas ou privadas. Embora Hopkins tivesse uma visão de mundo bem particular, “Primavera e outono” não tem restrição de credo, raça, gênero ou época. É um poema a respeito da nossa “ruína” [“blight”]. Aquela que compartilhamos com aqueles que odiamos e amamos. Às vezes, a poesia deve nos abater, antes de nos confortar. Por essas razões, “Primavera e outono” é o poema mais triste já escrito.
******
Nick Ripatrazone é escritor; autor, entre outros, de The fine delight: Postconciliar catholic literature (2013); integra a equipe e escreve regularmente para o site The Millions