A mídia é condescendente com as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc)? O Observatório da Imprensa exibido terça-feira (08/07) pela TV Brasil discutiu a relação dos meios de comunicação com as Farc. Na semana passada, o exército colombiano libertou a ex-senadora franco-colombiana Ingrid Betancourt, seqüestrada pelas Farc há seis anos, e outros 14 reféns que estavam em poder da organização.
Participaram do programa ao vivo em São Paulo o desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo, Wálter Maierovitch, estudioso da criminalidade organizada e do terrorismo, e Lourival Sant’Anna, repórter especial de O Estado de S.Paulo. O jornalista e escritor Fábio Pannunzio, repórter especial da Rede Bandeirantes, participou pelo estúdio de Brasília.
Alberto Dines comentou os assuntos que estiveram em evidência nos últimos dias. O primeiro tema da seção ‘A mídia na semana’ foi a pane da Telefonica que deixou cerca de 2,4 milhões usuários do serviço de banda larga da empresa sem acesso à Internet em São Paulo por quase 24horas na semana passada. Em seguida, o jornalista comentou o início da campanha eleitoral para prefeito e vereador e disse que os candidatos foram às ruas não para apresentar suas propostas, mas para ‘mostrar suas qualidades e que são capazes de comer qualquer gororoba’.
Outro assunto foi a Operação Satiagraha, da Polícia Federal, que prendeu o banqueiro Daniel Dantas, o ex-prefeito de São Paulo Celso Pitta e o especulador Naji Nahas. A operação investiga desdobramentos do caso mensalão. O grupo está sendo acusado de cometer crimes financeiros. ‘Quantos dias ficarão na mídia é outra questão’, alertou Dines. O último assunto da seção foi o assassinato do menino João Roberto, ocorrido segunda-feira, no Rio de Janeiro. A criança de quatro anos foi morta por engano pela polícia carioca quando voltava de uma festa com a mãe e o irmão mais novo. Dines questionou se os jornais paulistas teriam dado destaque ao caso se o erro tivesse sido cometido pela polícia paulista.
No editorial que precede o debate, Dines disse que os meios de comunicação têm um papel relevante para o esclarecimento de dúvidas que persistem a respeito da libertação de Ingrid Betencourt e dos demais reféns. ‘A mais importante tarefa da imprensa será o desarmamento dos espíritos. A guerra fria, que acabou na Europa em 1989, precisa terminar também aqui. A imprensa pode ser o principal instrumento desta pacificação atrasada há duas décadas’, observou.
A reportagem que foi ao ar antes da discussão ao vivo, mostrou a opinião do comentarista internacional Claudio Bojunga. Para ele, a imprensa é importante como instrumento de análise. O jornalista comentou que recentemente leu artigos que mostram que a opinião pública está exaurida desta ‘guerra absurda’. As Farc teriam prorrogado demais a idéia de uma guerrilha latino-americana. Nessa questão, a imprensa teria um ponto de vista ‘militante’. O fator decisivo para o declínio das Farc não teria sido a participação da mídia, mas sim a disposição do presidente da Colômbia, Álvaro Uribe, de derrotar a guerrilha.
Bojunga relatou que a maior parte da imprensa colombiana classifica as Farc como ‘guerrilha terrorista’ porque ataca civis como meio para alcançar seus objetivos. O jornalista analisou a transformação que o projeto de poder da organização sofreu. Até a queda do Muro de Berlim, ocorrida em 1989, e o declínio da União Soviética, as Farc eram o braço armado do Partido Comunista na Colômbia e se guiavam por uma retórica ‘marxista-leninista’.
Ao perder essas importantes fontes de financiamento, passaram a adotar um ‘vago bolivarianismo’. Perverteram-se ao buscar no narcotráfico e no seqüestro de civis novas fontes de financiamento. O jornalista considera que o governo brasileiro adota uma postura inteligente ao não classificar as Farc como ‘guerrilha’. Com isso, não perderia a possibilidade de ser mediador em um processo de paz.
O secretário-geral das Relações Exteriores, Samuel Pinheiro Guimarães Neto, explicou que para o governo brasileiro a guerrilha na Colômbia é uma questão interna da sociedade e do Estado colombianos e que o Brasil respeita o princípio da não intervenção. O embaixador afirmou que o Brasil se colocou à disposição do governo da Colômbia para colaborar no processo de libertação dos reféns das Farc.
Jacques Gomes Filho, corresponde do SBT na América Latina, comentou uma série de reportagens que fez sobre as Farc em 1999, para as quais entrevistou o então o então segundo homem mais importante da guerrilha, Raul Reyes. O jornalista contou que ficou impressionado com a preocupação excessiva que Reyes mostrava com a imagem da organização. O correspondente ficou quatro dias no acampamento das Farc, mas só pode filmar na manhã de um deles. Os guerrilheiros alegavam que não estavam com roupas adequadas e que o local ainda não estava preparado. Neste período, o grupo queria ser reconhecido como uma organização que tinha regras claras e que eram respeitadas, queriam sair da ilegalidade. Atualmente, para o jornalista, as Farc se sentiriam injustiçadas tanto pela ação do governo quanto pela pressão da mídia colombiana. Por isso, uma aproximação com meios de comunicação estrangeiros seria menos arriscada.
No debate ao vivo, o desembargador Wálter Maierovitch comentou a influência das fontes de arrecadação das Farc no caráter da organização. No início as Farc, cobravam uma espécie de pedágio dos grandes latifundiários para que estes não fossem seqüestrados; extorquiam e cobravam para proteger áreas de plantio de coca. Em uma fase posterior, já na década de 1990, sofrendo pressões do governo colombiano e dos Estados Unidos, começaram a atuar no tráfico de drogas. Essa passou a ser a maior fonte de financiamento da organização.
O especialista em criminalidade organizada e terrorismo explicou que o termo ‘narco-guerrilha’ foi utilizado em 1984 pelo então embaixador dos Estados Unidos para designar cartéis de drogas como os de Cali e de Medelín. ‘Saiu a narco-guerrilha e entrou o narcoterrorismo e a imprensa brasileira ainda fala na narco-guerrilha como se estivessem vivos os cartéis de Escobar’, criticou. Maierovitch destacou que no início do governo Uribe as Farc estavam a ‘800 metros do Palácio do Governo’ e hoje está embrenhada na selva, sem executar ações de guerrilha urbana.
Lourival Sant’Anna, que esteve recentemente em Bogotá, comentou que um dos desafios da cobertura do fim do seqüestro de Ingrid Betancourt foi conseguir entender como o comandante que coordenava o acampamento – homem de confiança do comandante militar das Farc – foi convencido de reunir os reféns e embarcá-los em um helicóptero com desconhecidos. ‘Nós jornalistas odiamos comprar uma versão, principalmente oficial, que subestime a nossa inteligência’, afirmou.
Sant’Anna, que freqüenta a Colômbia há mais de dez anos e tem inúmeras fontes no país, disse que analistas internacionais acreditam que o comandante das Farc foi trapaceado. Para ele, o resgate da ex-senadora muda o ‘tabuleiro regional’ e coloca Álvaro Uribe em uma boa posição entre os líderes da América Latina.
A TV brasileira no acampamento das Farc
Fabio Pannunzio contou que teve o privilégio de visitar o acampamento das Farc no ‘ocaso’ do romantismo ideológico da guerrilha, no início dos anos 2000. O período era de auto-afirmação da organização, que tentava mostrar que estava disposta a negociar com o governo uma solução pacífica. Os primeiros contatos se deram através de um representante das organização no Brasil, mas os acertos finais foram firmados na Colômbia. Dois repórteres da imprensa escrita brasileira já tinham estado no acampamento.
Para o desembargador Wálter Maierovitch a libertaçaõ da ex-senadora não representa, em curto prazo, o fim das Farc. O fato de o grupo saber se movimentar na selva, seria uma grande vantagem em relação aos seus oponentes. E mesmo o conflito interno e a falta de novas adesões não seriam suficientes para decretar o fim da guerrilha. Maierovitch acredita que possa surgir uma outra facção dentro da organização.
Na opinião do desembargador, o currículo do presidente Uribe ‘não é recomendável’. Uribe e sua família estariam envolvidos com o narcotráfico, inclusive tendo participado do projeto social do traficante Pablo Escobar e teriam empregados em fazendas vivendo em regime de escravidão. Essa supervalorização da figura do presidente ocorrida recentemente inspiraria cuidados, já que sempre teria representado as oligarquias colombianas.
Sant’Anna disse que o tráfico de entorpecentes foi praticamente aceito na sociedade colombiana no passado. Para ele, a história recente do país é traumática. Uribe teria sido o único governante do país que conteve a guerrilha, reduzindo drasticamente suas ações, por isso a gratidão do povo. O jornalista ressaltou que o pai de Uribe foi assassinado pelas Farc, daí o ódio que o presidente nutre pelo grupo guerrilheiro.
Outro assunto do programa foi uma possível comparação entre as Farc e os traficantes de drogas do Rio de Janeiro. Fábio Pannunzio, acredita que o crime organizado em uma favela carioca nada tem a ver com uma organização política revolucionário que chegou ao tráfico de drogas para financiar seus projetos.
Perfil dos convidados:
Wálter Maierovitch é juiz e desembargador aposentado do Tribunal de Justiça de São Paulo. Fundou e preside o Instituto Brasileiro Giovanni Falcone de Ciências Criminais, especializado em criminalidade organizada e terrorismo. Foi secretário Nacional Anti-drogas da presidência da República.
Lourival Sant’Anna é repórter especial de O Estado de S.Paulo, onde também foi editor-chefe, editorialista e corresponde em Londres. Trabalhou no Serviço Brasileiro da BBC e na CNN.
Fábio Pannunzio, jornalista e escritor, é repórter especial da Rede Bandeirantes. Autor de reportagens investigativas, trabalhou nas principais redes abertas de televisão do país. Foi o primeiro repórter de TV brasileiro a ser admitido pelas Farc em seus acampamentos.
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Mídia poderá ser um instrumento de pacificação
Alberto Dines # editorial do Observatório da Imprensa na TV nº 468 exibido em 87/2008
Tem tudo para ser o fato do ano. A libertação de Ingrid Betancourt pode representar uma reviravolta no quadro político latino-americano e transformar o continente conflagrado num projeto de convivência.
Uma coisa já está clara: as próprias FARC encarregaram-se de liquidar a mística da insurgência política. E quem o disse foi Fidel Castro ao condenar como cruel e anti-revolucionária a indústria de seqüestros colombiana.
Falta ainda esclarecer muita coisa no episódio da libertação dos 15 seqüestrados na quarta-feira passada e a mídia deve desempenhar um papel importante no desvendamento dos mistérios que subsistem.
A mais importante tarefa da imprensa será o desarmamento dos espíritos. A guerra fria, que acabou na Europa em 1989, precisa terminar também aqui. A imprensa pode ser o principal instrumento desta pacificação atrasada há duas décadas.