Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Gato por lebre

No conto O segredo do Bonzo (1882), de Machado de Assis, os sentidos políticos e comerciais são combinados em torno da eficiência publicitária, cuja linguagem, além de apresentar as informações necessárias sobre a ideologia ou o produto, deve convencer o público a assimilar cada ordem de consumo como hábito comportamental. Revestidos da figura ambígua do bonzo, aparentemente notado como sábio, os pomadistas – responsáveis pelos milagres – independentemente da concretude dos seus atos, contagiavam a população com truques tão ardilosos, capazes até de simular encantos, graças à ignorância do público, que tudo absorve, sem o devido filtro crítico.

Os pomadistas são seguidores do bonzo ancião Pomada, defensor de uma curiosa tese que pode corresponder a uma crítica irônica, feita por Machado de Assis, direcionada a uma prática publicitária que privilegia “certas” avaliações do fenômeno em detrimento das propriedades substantivas do fato:

“Haveis de entender, começou ele, que a virtude e o saber têm duas existências paralelas, uma no sujeito que a possui, outra no espírito dos que o ouvem ou contemplam. (…) Os frutos de uma laranjeira, se ninguém os gostar, valem tanto como as urzes e plantas bravias, e, se ninguém os vir, não valem nada; ou, por outras palavras mais enérgicas, não há espetáculo sem espectador. (…) se uma cousa pode existir na opinião, sem existir na realidade, e existir na realidade, sem existir na opinião, a conclusão é que das duas existências paralelas a única necessária é a da opinião, não a da realidade, que é apenas conveniente.”

Rentabilidade, consideração e louvor

Estabelecendo uma correlação entre verdade e lógica, e uma outra envolvendo opinião e retórica, podemos compreender que o discurso publicitário adotado pelos pomadistas é de cunho retórico. Cabe à retórica, segundo Oswald Ducrot e Tzvetan Todorov, em Dicionário das ciências da linguagem (1976), mostrar o modo de constituir as palavras visando convencer o receptor sobre determinada verdade. Ao longo dos tempos, a retórica foi se transformando em fraude sutil, isto é, sinônimo de recursos embelezadores do discurso, ganhando inclusive certo tom pejorativo. Nesse sentido, explica-se, por exemplo, a existência de uma opinião oca de realidade, conforme a propaganda sustentada pela persuasão pomadista.

Na terminologia empregada por Aristóteles, chega-se à conclusão de que os pomadistas, no conto de Machado de Assis, transformam “raciocínios preferíveis” do discurso persuasivo em “raciocínios necessários” caros à lógica, cuja finalidade é associar ideias que apelam, simultaneamente, para o racional e o emocional das pessoas, com argumentações sedutoras através da palavra. A técnica utilizada pelos pomadistas se fundamenta em “argumentos quase lógicos”, os quais, segundo Olivier Reboul, em Introdução à retórica (1998), consistem no processo de condução de determinada instrução a ser adotada pelo público (docere), enaltecendo os aspectos agradáveis (delectare) e impressionáveis (movere) daquela medida propagada como de interesse comum.

Os pomadistas defendem a tese de que a sua opinião é sempre compatível com os anseios públicos, mesmo que a realidade dos valores apregoados por estes agentes da propaganda seja incompatível com o desenvolvimento sustentável da sociedade. A partir das teses propagandísticas que articulavam a promoção de seus feitos, os pomadistas buscavam implicitamente ganhos particulares, isto é, rentabilidade e principalmente “consideração e louvor, que é outra e melhor espécie de moeda”, de acordo com Machado de Assis.

O deformador de informação

O pomadista Titané utilizou-se de uma espécie de informativo publicitário para divulgar as suas alparcas comercialmente. Dizia aquela folha volante que as alparcas “eram chamadas as primeiras do mundo, por serem mui sólidas e graciosas”. Destacava ainda que “nada menos de vinte e dous mandarins iam requerer ao imperador para que, em vista do esplendor das famosas alparcas de Titané, as primeiras do universo, fosse criado o título honorífico de ‘alparca do Estado’”. A partir dali, começavam a crescer as encomendas de tal produto, rendendo ao personagem uma publicidade capaz de angariar as atenções da comunidade para o mencionado produto.

Mais importante do que comprovar a excelência do produto, este tipo de publicidade se valeu da técnica argumentativa destacada por João Anzanello Carrascoza, em A evolução do texto publicitário (2002), como “apelo à autoridade”. Este se caracteriza como “uma arma de sedução que vem da Idade Média, época em que as sociedades europeias eram controladas pela tradição e, para as massas, a verdade provinha da autoridade em vez das provas fornecidas por seus próprios sentidos ou das conclusões alcançadas através do raciocínio independente”. Podemos, então, concluir que o pomadista Titané restringiu a percepção pública dos alparcas, destacando apenas a impressão do produto por parte do grupo seleto de mandarins. E estes funcionaram como formadores de opinião, direcionando a coletividade para a ação de compra dos calçados produzidos por Titané.

O formador de opinião como deformador de informação se faz presente também com toda força no personagem Diogo Meireles, inventor da mais engenhosa experiência protagonizada por um pomadista: a criação de um nariz metafísico para substituir os narizes inchados decorrentes de uma estranha doença que tomou conta da cidade de Fuchéu. Aprovado pelos “físicos de Malabar”, o processo cirúrgico caiu na graça do público. Mesmo desnarigados, os pacientes mantinham o hábito de assuar com lenços, tamanha era a fé de que eles, munidos de um nariz metafísico, não estavam sem o órgão. Com fina ironia, Machado de Assis já discutia a propaganda enganosa de vender gato por lebre.

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Marcos Fabrício Lopes da Silva é professor da Faculdade JK, no Distrito Federal, jornalista, poeta e doutor em Estudos Literários pela Faculdade de Letras da UFMG