O poeta Alberto da Costa e Silva diz que há muitas maneiras de amar os livros, mas a mais estranha que conheceu seria a de um amigo seu que, à medida que os lia, arrancava as suas páginas e as punha no lixo. Não revela o nome do amigo, mas este articulista sabe de um leitor bem famoso que, em vez de arrancar as páginas uma a uma, manda o livro lido para o cesto do lixo.
“O que fazes com os exemplares lidos?”, perguntei-lhe, certa tarde fria de janeiro de 1990, à mesa do Café Samoa, no Paseo de Gracia, quase em frente à insólita Casa Milà, mais conhecida como “La Pedrera”, uma das mais estranhas entre as obras com que o arquiteto Antoni Gaudí (1852-1926) embelezou a Barcelona da belle époque. “Los tiro a la basura”, disse-me, sem pestanejar, acrescentando que preferia ficar com as imagens suscitadas pela leitura do que encher o seu apartamento de livros e mais livros, muitos dos quais recebia sem que os pedisse.
Para quem ainda não descobriu quem é esse leitor voraz deve-se dizer que tal estranho amante dos livros é hoje considerado o maior ficcionista em atividade da Língua Espanhola, ainda que seja catalão. Seu nome: Eduardo Mendoza (1943), autor de “La Ciudad de Los Prodígios”, “La Verdad Sobre el Caso Savolta”, “El Misterio de la Cripta Embrujada”, “La Isla Inaudita”, “El Año del Dilúvio” e “Una Comedia Ligera”, entre outros livros que vendem aos milhares no mundo de língua hispânica.
Mas a que vêm estas reminiscências de mais de duas décadas? Vêm a propósito do recente lançamento do “Livro dos Ex-Líbris”, de Alberto da Costa e Silva e Anselmo Maciel (organização), publicado pela Academia Brasileira de Letras e pela Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, com apoio cultural do Ministério das Relações Exteriores. No prefácio que escreveu para esta obra, Costa e Silva lembra de outros colecionadores bizarros, a exemplo daquele que não deixava rastros do que lia por ciúme de que o mesmo exemplar tivesse outros leitores.
Há alguns menos bizarros, como aqueles que costumam assinar o nome na folha de rosto do livro adquirido. Ou ainda aqueles que mandam fazer um carimbo para marcar como seus todos os exemplares de sua biblioteca, talvez para incomodar os que pedem livros emprestados e não costumam devolvê-los. Há, porém, observa o poeta, uma maneira mais antiga e requintada de assinalar a posse do livro: o ex-líbris, que pode ser um selo a ser colado igualmente na folha de rosto ou na contracapa.
É dessa mania de alguns poucos e zelosos bibliófilos que trata este livro que, a rigor, nasceu a partir da mostra “O barão do Rio Branco, colecionador de ex-líbris”, realizada em abril de 2012 nos salões da Academia Brasileira de Letras, no Rio de Janeiro. O chanceler José Maria da Silva Paranhos (1845-1912), o barão do Rio Branco, homem público a quem o Brasil muito deve por ter as fronteiras que tem hoje, teria sido o primeiro ex-librista brasileiro de quem se tem notícia. Em suas andanças pela Europa, costumava reunir uma extensa coleção de obras raras nas quais sempre pespegava seu ex-líbris. E mais: muitos dos livros de sua biblioteca traziam o ex-líbris de outros bibliófilos, o que o levou a fazer a coleção que hoje pertence ao acervo da Biblioteca do Ministério das Relações Exteriores no Rio de Janeiro.
Materiais diversos
Este livro, porém, não reúne só a coleção do barão, mas as dos professores Paulo Bodmer, Santos Sobrinho e Luiz Felipe Stelling, especialistas no assunto, além da coleção da própria Academia, que fecha o volume. No extenso texto que abre o livro, “Sua Excelência, o ex-líbris”, Ubiratan Machado faz um retrospecto da história desse símbolo que já representou o poder de um faraó e de um rei assírio. E lembra que essas pequenas jóias de arte já foram assinadas por mestres como Albrecht Dürer (1471-1528), Hans Holbein (1497-1543), Pablo Picasso (1881-1973) e Henri Matisse (1869-1954), observando que não é à toa que alguns exemplares alcançam preços inimagináveis no mundo alfarrabista. Apesar disso, diz o especialista, o ex-líbris continua praticamente ignorado no Brasil, talvez porque seja mania reservada aos bem-postos na vida e no mundo da cultura.
Machado diz ainda que os primeiros ex-líbris surgiram na Alemanha, na região da Baviera, durante o terceiro quarto do século 15. O mais antigo seria o de Hans Igler (Johannes Knabensberg), capelão da família bávara Schoenstett, gravado entre 1470 e 1480, medindo 152 x 200 mm. Representa um ouriço de perfil, comendo erva. Por que um ouriço? Melhor o leitor acessar o livro para lhe conhecer a história.
Um dos primeiros escritores interessados em ex-líbris, segundo Machado, foi Erasmo de Roterdã (1467-1536), autor de “Elogio da Loucura”. Mas a idade de ouro do ex-líbris foi mesmo o século 18, o do Iluminismo, quando o vício, até então restrito à nobreza, alcançou a burguesia. Afinal, exibir na contracapa ou na folha de rosto o selo do ex-líbris era sinal de status.
Ainda segundo Machado, 1922 foi o ano de nascimento do ex-líbris moderno, acompanhando a evolução das artes plásticas. No Brasil, muitos foram os ex-libristas como Tristão da Cunha, Paulo de Almeida Prado e João Franklin da Costa, que encomendavam o ex-líbris à casa parisiense Agry, ou Alfredo Pujol, Antônio Fernandes Figueira e o Instituto Oswaldo Cruz que preferiam outra casa parisiense, a Stern. Em São Paulo, o artista Adolf Kohler foi o responsável pelos ex-líbris de Yan de Almeida Prado, José Carlos de Macedo Soares, Guilherme de Almeida e Adhemar de Barros. Segundo o historiador, até o escritor Lima Barreto (1881-1922), notório revoltado social e representante das classes baixas, exibia ex-líbris nos livros de sua biblioteca.
No breve ensaio “Pesquisa e conhecimento do ex-líbris no Brasil e em Portugal”, Paulo Bodmer, professor universitário, bibliófilo e colecionador de antiguidades gráficas, ressalta que, desde o começo do século 20, vários artistas brasileiros brilharam na arte de criação do ex-líbris, como Alberto Lima e Carlos Oswald. Dos contemporâneos, Jorge Oliveira, radicado na cidade de Caçador-SC, é um dos derradeiros criadores, com mais de 500 trabalhos para colecionadores e bibliófilos.
Em “O Desejo Gráfico dos Ex-líbris”, Santos Sobrinho, colecionador e bibliófilo, faz também breve histórico da trajetória do ex-líbris, enumerando seus estilos — do vitoriano ao art nouveau, passando pelo art déco, além de criações próprias do Expressionismo e do Surrealismo. Por fim, Luiz Felipe Stelling, professor do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro (IFRJ), bibliófilo e colecionador, em “Ex-líbris como objeto de estudo e coleção”, destaca que, no final do século 20, vários artistas começaram a criar ex-líbris por meio de computador, mas faz uma relação de tipos e matrizes que foram utilizados até então, como a xilografia, a heliogravura e o clichê. E acrescenta que o ex-líbris pode ser feito não só em papel, mas em tecido, couro, plástico e finas chapas de madeira ou cortiça.
Enfim, para quem quiser conhecer a fundo tudo o que se refere ao ex-líbris este volume se torna desde já imprescindível, digno de receber também em sua contracapa ou folha de rosto o selo de seu seleto proprietário, ainda que existam aqueles que preferem atirar livros lidos ao lixo.
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Adelto Gonçalves é doutor em Letras na área de Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo.