A ministra Rosa Weber, do Supremo Tribunal Federal (STF), determinou a suspensão dos efeitos da decisão liminar da juíza da 6ª Vara Cível de Vitória, Ana Cláudia Rodrigues de Faria Soares, que obrigou o jornal Século Diário a excluir cinco conteúdos (dois editoriais e três reportagens) relacionados ao promotor de Justiça capixaba, Marcelo Barbosa de Castro Zenkner. Na decisão, após ouvir todas as partes, a magistrada classificou como uma “interferência na livre expressão jornalística” o fato de a juíza ter ainda feito recomendações para futuras publicações. Na ocasião da decisão, as recomendações da juíza foram ironicamente chamadas de “manual de redação”. A ministra classificou as “recomendações” como censura prévia.
A decisão da ministra saiu no último dia 30 de junho, nos autos de uma reclamação (RCL 16436) pelo diretor-responsável de Século Diário, o jornalista Rogério Medeiros. No documento, a ministra Rosa Weber acolheu os argumentos da defesa do jornal, que tinha parte de suas verbas publicitárias retidas na fonte por conta da execução de multa pelo suposto descumprimento da decisão da juíza da 6ª Vara Cível da Capital. A partir de agora, o jornal poderá voltar a citar o nome de Marcelo Zenkner, sem qualquer limitação imposta pelo Judiciário capixaba.
Ao longo das 21 páginas da decisão, a ministra Rosa Weber destacou a necessidade de preservação da liberdade de expressão, sobretudo quanto relativa ao acompanhamento das atividades de autoridades e demais agentes públicos:
“Com efeito, é inevitável – e mesmo desejável, do ponto de vista do interesse público – que os ocupantes de cargos ou funções na estrutura do Estado, investidos de autoridade, tenham o exercício das suas atividades escrutinado seja pela imprensa, seja pelos cidadãos, que podem exercer livremente os direitos de informação, opinião e crítica. É sinal de saúde da democracia – e não o contrário-, que os agentes políticos e públicos sejam alvo de críticas – descabidas ou não – oriundas tanto da imprensa como de indivíduos particulares, no uso das amplamente disseminadas ferramentas tecnológicas de comunicação em rede”.
Sobre a imposição de censura prévia, Rosa Weber avaliou que é vedado ao Poder Público “interferir na livre expressão jornalística, não lhe cabe delinear as feições do seu conteúdo mediante a imposição de critérios que dizem respeito a escolhas de natureza eminentemente editorial dos veículos da imprensa”. Para a magistrada, o “regime democrático não tolera a imposição de ônus excessivos a indivíduos ou órgãos de imprensa que se proponham a emitir publicamente opiniões, avaliações ou críticas sobre a atuação de agentes públicos”.
“Penso que, sendo a imprensa, produto do ser humano, naturalmente imperfeita, estará submetida a censura prévia se, em questões de interesse público, estiver sujeita ao pagamento de indenizações por todo e qualquer erro que não cause dano concreto e efetivo, mormente quando, ausente deliberada má-fé e não demonstrada a prévia ciência do caráter inverídico das afirmações ao tempo em que manifestadas, mostram-se puramente subjetivas as supostas ofensas”, afirmou.
Rosa Weber também atacou as determinações da juíza Ana Cláudia de Faria Soares, que estabeleceu regras – semelhantes a de um “manual de redação” – para futuras publicações relacionadas ao promotor Marcelo Zenkner: “Ora, o núcleo essencial e irredutível do direito fundamental à liberdade de expressão do pensamento compreende não apenas os direitos de informar e ser informado, mas também os direitos de ter e emitir opiniões e de fazer críticas”.
E completou: “O confinamento da atividade da imprensa à mera divulgação de informações equivale a verdadeira capitis diminutio em relação ao papel social que se espera seja por ela desempenhado em uma sociedade democrática e livre – papel que a Constituição reconhece e protege. Em nada contribui para a dinâmica de uma sociedade democrática reduzir o papel social da imprensa a um asséptico aspecto informativo pretensamente neutro e imparcial, ceifando-lhe as notas essenciais da opinião e da crítica”.
Para a ministra do STF, a proibição do uso de expressões críticas à conduta de agentes públicos não se compatibilizam com o regime constitucional. “Liberdade de imprensa e objetividade compulsória são conceitos mutuamente excludentes. Não tem a imprensa livre, por definição, compromisso com uma suposta neutralidade, e, no dia que eventualmente vier a tê-lo, já não será mais livre”, considerou Rosa Weber, que suspendeu a deliberação da Justiça estadual até o julgamento do mérito da reclamação no STF.
A decisão da ministra Rosa Weber foi destaque no site do STF e também na revista eletrônica Consultor Jurídico (Conjur). Em ambos, foi disponibilizado o acesso à cópia do documento (clique aqui para ler a íntegra da decisão liminar).
Censura prévia
No dia 28 de junho de 2012, a juíza da 6ª Vara Cível de Vitória, Ana Cláudia Rodrigues de Faria Soares, havia determinado a exclusão de três reportagens e dois editoriais relacionados ao promotor Marcelo Zenkner por entender que os textos seriam “sensacionalistas” e “desrespeitosos”. Foram retiradas do ar as reportagens intituladas “Promotor ‘esquece’ de protocolar recurso, recebe aula de magistrado e pode ser punido”, “Decisão judicial contrária à ação de Zenkner é precedente contra denúncias sem elementos” e “Vereador vítima de abuso de poder e intimidação denuncia Marcelo Zenkner”, além dos editoriais intitulados “Nota zero para Zenkner” e “Para dançar o fado”. Os textos foram publicados entre maio de 2010 e março de 2012.
Na medida liminar, a juíza não proibiu somente a menção do nome de Marcelo Zenkner, mas também estabeleceu um “manual de redação” ao tratar o representante ministerial. A juíza determinava que as futuras reportagens “primem pela objetividade das informações, abstendo-se de incluir adjetivações pejorativas ou opiniões desfavoráveis que extrapolem os limites da crítica literária, artística ou científica; limitem-se a narrar os fatos sem se pautar por comentários, boatos, acusações isoladas e desprovidas de idoneidade, sempre fazendo referência às fontes; e procedam com imparcialidade e isenção na divulgação de notícias relacionadas ao autor, observando apenas o contexto fático, sem se pautar por tendências, ideologias ou intuito de autopromoção ou promoção de terceiros em detrimento do autor”.
Na época, a decisão liminar ganhou repercussão nacional, sendo reproduzida pelos principais jornais impressos e publicações do País, casos dos jornais O Globo, Estadão, Folha de S. Paulo e Jornal do Brasil. Entidades nacionais de classe também se manifestaram e repudiaram o caso de censura prévia, como a Associação Nacional dos Jornais (ANJ), Associação Brasileira de Imprensa (ABI) e a Associação Espírito-Santense de Imprensa (AEI).
Campanha de intimidação
O jornal Século Diário é alvo de uma campanha de intimidação por parte de juízes e promotores desde o ano de 2009, na ocasião da cobertura jornalística da Operação Naufrágio, que revelou casos de corrupção no Judiciário capixaba. O número de processos contra o jornal – patrocinado pelas bancas de advocacia ligadas às entidades de magistrados e membros do Ministério Público – saltou após a publicação do livro “Um novo Espírito Santo: onde a corrupção veste toga”, em agosto de 2010. Desde então, o jornal passou a ser alvo de decisões liminares pela retirada de matérias do ar, bem como seus jornalistas passaram a ser acionados criminalmente por juízes e promotores.
Um dos casos envolve o juiz Carlos Eduardo Ribeiro Lemos, que obteve uma liminar em outubro de 2011, proibindo a publicação de sequer citar o nome do magistrado. Essa decisão foi derrubada apenas em março deste ano, quando a 3ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça entendeu que o juízo de 1º grau não poderia ter censurado a publicação diante da impossibilidade jurídica do pedido feito por Carlos Eduardo e aceito pela juíza Rozenéa Martins de Oliveira. Na ocasião, o colegiado também reduziu o valor da indenização ao magistrado de R$ 500 mil para R$ 40 mil. No entanto, a defesa do jornal Século Diário ainda recorre desta parte da decisão.
Também figuram como parte em processos contra o jornal, os juízes Carlos Magno Moulin Lima e Flávio Jabour Moulin – respectivamente, sobrinho e filho do ex-desembargador Alemer Ferraz Moulin, ex-presidente do TJES –, bem como os promotores Eder Pontes da Silva (atual procurador-geral de Justiça capixaba) e Inês Thomé Poldi Taddei, nora do ex-desembargador Rômulo Taddei. O jornal Século Diário também foi alvo de ofensas por parte da Associação de Magistrados do Estado (Amages), que reiteradamente classifica esta publicação de “braço publicitário do crime organizado” – tema de representações nas instâncias superiores contra os responsáveis pela entidade.