A seleção canarinho não foi tão bem como gostaríamos, mas, a Copa do Mundo foi bem melhor do que se esperava. Os gringos tomaram de assalto o país e as tradicionais rivalidades se limitaram nas quatro linhas dos gramados. A cobertura da “Copa das Copas” foi a primeira em full HD. Tivemos plano fechado nos rostos dos jogadores, chegando ao close caso descessem algumas lágrimas, e houve também uma panorâmica das arquibancadas, quando, em plenos pulmões, a torcida entoava o hino brasileiro. Aliás, a tradução dos hinos de todos os povos confluindo em harmonia, paz e fraternidade manteve vivo o espírito esportivo ao convidar à se juntar todas as nações em prol da beleza e da festa.
O “Não Vai Ter Copa!”, obviamente, não significava um boicote por parte do próprio povo anfitrião da Copa do Mundo. O futebol é paixão nacional e o povo brasileiro é reconhecido internacionalmente por sua hospitalidade. O “Não Vai Ter Copa!”, digamos, em outras palavras foi expressão de um sentimento por mudanças na esfera política de representação que atenda as necessidades da população. Com a escolha do Brasil e do Rio de Janeiro, respectivamente, como estado-palco dos grandes eventos, entrou em curso um processo de limpeza social e maquiagem urbana nos arredores dos locais das competições e o serviço público que mais recebeu investimento desde os Jogos Pan-Americanos foi a segurança. O significado da expressão “para inglês ver” foi entendido pelos gringos mochileiros que dormiram em acampamentos, ao exemplo do Terreirão do Samba.
Em O Brasil na terra do Misha, documentário de Silvio Tendler, vemos que os boicotes na história do esporte, tendo as Olimpíadas como referência, se trataram de uma maneira patriótica de expressar uma visão de mundo. Em 1976, os países africanos boicotaram as Olimpíadas de Montreal, no Canadá, por causa do apartheid. Em 1980, os EUA lideraram o boicote para os jogos de Moscou, na Rússia, então país membro da União Soviética. Nas Olimpíadas de Los Angeles, em 1984, nos Estados Unidos, foi a vez dos socialistas boicotarem os jogos. Esses boicotes funcionaram, sobretudo, com a forma de um país ser ouvido pela imprensa mundial.
Nos jogos de Munique, Alemanha, em 1970, a imprensa mundial que fazia a cobertura das Olimpíadas passou a noticiar a tensão entre Israel e a Palestina quando terroristas palestinos que sequestram nove atletas israelenses (outros dois morreram ao reagir) pela troca de 200 árabes presos em Israel. Na repercussão do desfecho ao vivo, seja por TV ou rádio, ficou público o despreparo da polícia alemã no episódio conhecido como “Massacre de Munique”. Steven Spielberg dirigiu a ficção Munique lançado comercialmente em 2005. Somente a crítica norte-americana não entendeu o filme como mensagem de vingança.
Lionel Messi e Cristiano Ronaldo podem não ter jogado a bola que sabem durante a Copa do Mundo no Brasil, mas ao demostrarem publicamente sua solidariedade à Palestina comprovaram serem craques também no campo das ideias. No país do futebol, o Rei não entrou nesse jogo.
Gigante desperto
Restam menos de dois anos para as Olimpíadas no Rio de Janeiro. Tem publicidade (?) na televisão enaltecendo os projetos de cidade que saíram do papel como legado dos grandes eventos. Além de criado um Batalhão de Policiamento em Grandes Eventos (BPGE) e uma Cidade da Polícia, será que o “explicador” da prefeitura carioca saberia dizer se estaríamos na mesma situação caso déssemos azar no sorteio para tais jogos? Certamente o “explicador” se limitará às questões de âmbito municipal, fingindo não saber se existe alguma “força tarefa” em preparação ao equiparem a tropa da Guarda Municipal para um combate, quando esta deveria “proteger bens, serviços e instalações municipais”. O “explicador”, surgido num momento em que se aproximam as eleições, também deve gaguejar para expor à população por que o slogan “Somando forças” que ressaltava a união de seu prefeito com o governo do estado e a Presidência da República saiu do ar.
Dizem por aí que a população carioca será a grande campeã com o legado das Olimpíadas, independentemente do saldo de medalhas. A exemplo da Copa, com os caros ingressos per capita, a maioria da população vai assistir aos jogos pela televisão, mesmo que morem ao lado dos ginásios, arenas, parques aquáticos, entre outros centros poliesportivos. Os que ficarem do lado de fora depois do início das competições serão dispersados com bomba de efeito moral e bala de borracha. Quem tentar resistir acabará cercado e agredido. Haverá disparos com armas de fogo sejam por policiais fardados ou à paisana (P2), mas a liberdade de empresa de algumas redações certamente irá censurar essas arbitrariedades.
A cobertura das Olimpíadas deverá passar uma imagem positiva da rotina da cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, escondendo a “corrida armamentista” encetada pelas forças de segurança, depois de dada a largada para a preparação dos megaeventos. Junho de 2013 reivindicou uma legítima representação política do povo brasileiro. Entretanto, ao veicularem as imagens dos protestos, logo os vândalos roubam a cena (literalmente!), tendo em vista que são eles uma parte ínfima do contingente em comparação com a massa pacífica que ocupou as ruas. Do contrário, alguém em sã consciência consegue imaginar o que seria da cidade ou do país se milhares de manifestantes resolvessem sair tocando fogo em tudo, quebrando bancos, saqueando as lojas e depredando patrimônios públicos e privados?
Quando falamos em protesto, automaticamente vêm no imaginário as cenas de vandalismo. A Folha de S.Paulo, entre outros jornais, e demais veículos de comunicação, até agora, não fez nenhuma reportagem sobre policiais à paisana (P2) infiltrados nas manifestações provocando “os atos de violência” e tampouco seus colunistas não debateram a conduta dos policiais fardados que forjaram provas contra os manifestantes, chegando a ameaças de morte via redes sociais. O jornal O Dia (23/10/2013) publicou uma matéria em que a atriz e diretora Gleise Nana, após tornar público que recebeu “mensagens agressivas de policial na internet”, acabou não resistindo ao coma provocado por um suspeito incêndio em seu apartamento. Outros jornais e demais veículos de comunicação têm as provas dos envolvimentos de policiais nos “atos de violência” e basta um clique no YouTube que pipocam comprovações para nenhum curioso ficar com dúvida.
Em nota, a Polícia Militar do Rio de Janeiro informara que “em nenhum momento a PM negou que a Inteligência não tivesse agentes acompanhando a manifestação, com o objetivo de obter informações e prever movimentos. Estas informações são importantes para as decisões de comando. Estes agentes de inteligência trabalham apenas com a observação. Imaginar que um policial vá atirar um coquetel molotov em colegas de profissão, colocando suas vidas em risco, é algo que ultrapassa os limites do bom-senso e revela uma trama sórdida para justificar a violência criminosa desses vândalos”. Será mesmo mera coincidência que o mise-em-scène em Tropa de Elite I e II não daria verossimilhança ao “tiro amigo”, como é conhecido na linguagem policial?
Malcolm X nos alertava que “se você não for cuidadoso, os jornais farão você odiar as pessoas que estão sendo oprimidas, e amar as pessoas que estão oprimindo”. O atual momento mostra esse raciocínio em letras garrafais, como manchete de primeira página. A pauta do início das manifestações demonstrou que não era somente motivadas pelos irrisórios R$ 0,20 de diferença no preço das passagens de ônibus. Na letra do músico Marcelo Yuka “Ninguém Regula a América”, parceira das bandas O Rappa e Sepultura, uma passagem questiona: “Nós somos incapazes de transformar o país e acabar com a miséria e exploração do povo. Porque eles mobilizam toda essa força contra nós?” O gigante que acordou ano passado ainda deve levar mais um tempinho para despertar do pesadelo incutido pelos mecanismos do aparelho reacionário em tempos de ditadura pós-moderna.
Vai ter Olimpíada. E tomara que aprendamos a trabalhar melhor as divisões de bases para que tenhamos logo nossa primeira medalha de ouro no futebol.
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Paulo Mileno é ator