A revista The Economist por vezes assume posições que parecem ir contra a postura editorial (conservadora) do semanário. Eu respeito o jornalismo que eles praticam, mesmo quando discordo das conclusões de seus articulistas. Quase sempre divirjo de tudo o que eles publicam, com todo o respeito devido ao histórico semanário. Seu passado deveria ser conhecido por todo o universo do jornalismo mundial – um tradicional informativo britânico que não só assistiu, mas também contribuiu para a consolidação do capitalismo moderno na Inglaterra. É um ferrenho defensor do mercado, que às vezes até tenta fugir do lugar-comum imposto pelo encanto das forças do mercado livre.
A revista inglesa é um periódico que pratica jornalismo engajado. Toma partido. Apoia candidatos políticos em outros países além da Inglaterra. Apoiou José Serra e sempre fez dura oposição a Dilma Rousseff. Reprova ministros no Brasil e em outros países. Pediu a cabeça de Guido Mantega em 2012, o que trouxe desconforto à atual administração (8/12). A publicação tem grande credibilidade e muita gente não gostou. Mas jornalismo deste tipo é preferível àquele que pretende objetividade e imparcialidade, e acaba em oposição desleal e no vale-tudo das denúncias não apuradas do jornalismo declaratório.
Problema insolúvel
No início de agosto, a matéria de capa (9/8) da Economist abordou um tema importante: a (suposta) segurança que a web possibilitou às mulheres que ganham a vida com o comércio do próprio corpo. Sem susto ou assombro, o artigo comentou as vantagens que a web trouxe para as prostitutas, que agora, com a internet, “podem controlar suas próprias agendas e negócios”. Através de websites, elas “podem colocar-se no mercado, vender a si mesmas e construir suas marcas”, acredita a revista inglesa.
“Garotas de programa” estariam livres dos gigolôs e das cafetinas no maravilhoso mundo da prostituição na web, segundo a publicação inglesa. A revista analisou 190 mil perfis de um site alemão que vende sexo. Comprovou o óbvio: homens preferem as louras, que por sua vez lucram com isso (ganham 11% mais que as morenas). Gostam mais de mulheres saudáveis, e não das magrelas das passarelas e da TV. “Prostitutas são como ‘frilas’ de outras profissões”, publicou o ingênuo artigo. “É apenas um serviço”, acredita a revista. Bem razoável, não? Por que proibir a prostituição? Não é uma profissão como as outras? Não há razão para criminalização do comércio do sexo entre adultos que concordam em trocar sexo por dinheiro.
A prostituição é legal em 50% dos 100 países pesquisados pelo site de filantropia pública ProCon.org (23/12/2013). Países como Estados Unidos, Austrália, Noruega, Suécia e Islândia, entretanto, ainda relutam em liberar totalmente o negócio. Por quê? São países com índices de desenvolvimento humano (IDH) muito altos, e bem liberais quando o assunto é sexo ou prostituição. Principalmente os países nórdicos. Mas a vida não é tão simples como muitas vezes a revista sugere. Na Islândia, por exemplo, vender sexo não é crime, mas pagar por ele é. Problema insolúvel para quem precisa dos serviços de uma profissional do sexo. Não há venda sem comprador. A lei aplicou um xeque-mate no jogo da prostituição islandesa.
Nova modalidade de tráfico
A reportagem, apesar de bem-intencionada, falhou por sua ingenuidade e por sua argumentação linear. Faltou visão em ângulo aberto e fazer as conexões corretas. A prostituição na web está ligada ao tráfico de seres humanos, a escravidão do nosso tempo. Cafetões e donos de bordéis não foram embora. Agora também estão na rede a recrutar mulheres. A publicação inglesa falhou ao não fazer essa vinculação fundamental.
Alguém já esqueceu a reportagem de 2013 do Fantástico (31/1) sobre as brasileiras escravas do sexo em Espanha? A demanda por mulheres brasileiras é imensa no mercado internacional. Só ficam atrás de nigerianas e chinesas, informou o Estadode S.Paulo (24/2). Acreditar que a web vai liberar as profissionais do sexo do perigo por meio da “mão invisível” do mercado não me surpreende e nem a ninguém que conheça o credo da revista: o capitalismo aberto e a ausência do Estado na economia são panaceias no mundo contemporâneo. Por isso devemos liberar a prostituição: o mercado vai defender a mulher que se vende com sua mão invisível na web.
Acreditar nisso é crueldade. A Economist usou um tema “quente” e polêmico, incomum em suas pautas semanais, para reforçar sua eterna crença no livre mercado. A indiferença ao sofrimento alheio em benefício da defesa de interesses do mercado é oportunismo cínico. O artigo não conseguiu ou evitou comentar a realidade da expansão do tráfico de mulheres para exploração sexual. O relatório de 2012 do Escritório para Drogas e Crime da ONU (UNDOC) mostrou que 58% das mulheres vítimas de tráfico são direcionadas para a exploração sexual. Um número maior que o das vítimas de tráfico para exploração laboral (36%). Isso não está na matéria da Economist.
O erro foi grave por omissão. O artigo bem escrito e estruturado deixou de fora um problema sério de nossos tempos. A web trouxe mais segurança para algumas privilegiadas garotas de programa de origem europeia ou norte-americana. E algumas outras tantas aqui no Brasil e outras poucas aqui e ali dispersas na América Latina e outras partes do mundo. Mas ainda está longe de oferecer proteção as prostitutas fora do universo dos países desenvolvidos.
A web teve um impacto geográfico assimétrico e desigual na prostituição internacional. Beneficiou algumas poucas profissionais em países de alto padrão de vida, mas condenou um número imenso de mulheres de países da Ásia, África e América do Sul a conviver com a escravidão imposta por exploradores contemporâneos dessa nova modalidade de tráfico de cativas capturadas por meio de falsas promessas de uma vida melhor.
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Sergio da Motta e Albuquerque é mestre em Planejamento urbano, consultor e tradutor