Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Os conflitos entre negócio e torcedores

Em maio deste ano, escrevi aqui no Observatório que dentre os modelos de distribuição dos recursos do broadcasting, o campeonato nacional que mais se aproximava do ideal é a Premier League. O campeonato inglês, organizado pelos clubes desde 1992, divide metade do valor de maneira igualitária e o resto é de acordo com a classificação e a quantidade de jogos transmitidos. Contei lá que os valores subiram muito com o novo contrato, a ponto de o último colocado da temporada 2013/2014 receber mais que o campeão da temporada anterior.

No último final de semana começou a temporada 2014/2015, mas um dos principais, mais ricos e mais disputados torneios do mundo teve uma semana com duas controvérsias: uma manifestação de torcedores contra o valor dos ingressos e a notícia que o Manchester proibiria tablets em jogos no estádio do clube. Ambos os casos refletem o problema em coadunar no que se chama de “futebol moderno”, que se constituiu a partir dos anos 1990, as ferramentas oriundas de uma nova fase de mercantilização do jogo com os interesses dos torcedores de clubes, fundamentais tanto para que a paixão simbólica continue todos os dias quanto para movimentar o próprio mercado que existe a partir deste esporte.

Uma marcha foi realizada no último dia 16 de agosto em Londres. Organizada pela Football Supporters’ Federation – um elemento concreto de associação, que pode ser comparada à Frente Nacional de Torcedores, criada em 2011 no Brasil para pedir melhorias reais no esporte, tendo em vista a manutenção do direito de torcer da maneira “tradicional” –, o protesto foi contra o fato de os preços das entradas seguirem aumentando mesmo com as outras fontes de receita – não só o broadcasting, mas também os patrocinadores, especialmente no caso dos principais clubes – seguirem crescendo.

No caso britânico, é importante citar que se trata de um processo que reflete o que ocorreu na organização do jogo a partir da década de 1990. Se a Premier League trouxe uma série de benesses, como a maior atratividade no campeonato local, é necessário resgatar a conjuntura imediatamente anterior ao se tratar das tentativas de mudar as formas de torcer, trazendo ao futebol a ideia de espetáculo, com momentos específicos para comemoração e apoio.

Arenas multiuso

No ano passado, a ex-primeira-ministra Margaret Thatcher faleceu e em nenhuma partida do torneio houve minuto de silêncio. Isso porque foi no governo dela, um dos primeiros a aplicar as políticas neoliberais em países desenvolvidos, que se criou uma série de exigências para excluir os torcedores violentos, mas que acabaram também por afastar aqueles de classes menos favorecidas. O marco foi a “Tragédia de Hillsborough”, com 96 mortes e 766 feridos na semifinal da Taça da Inglaterra de 1989 – anos depois foi provado que a responsabilidade maior fora da organização e da polícia, com o relatório apresentado para justificar as mudanças nos estádios tendo se baseado em questões que não existiam e o primeiro-ministro David Cameron pedindo desculpas em 2012.

Coincidência ou não, é na década de 1990 que os grupos de comunicação privados, no mercado europeu desde a abertura do setor na década anterior, passam a enxergar o futebol como excelente produto para atrair audiência e com o início das disputas por direitos de transmissão. Assim, sem possibilidade de comprar o ingresso, os torcedores tiveram que optar pelos pacotes de pay-per-view, que eram mais baratos. De público de estádio, passaram a torcedores-telespectadores.

Neste sentido, vale a comparação com a Bundesliga, o campeonato que mais cresce no mundo. O torneio faz parte de um projeto que ganhou destaque com o título alemão na Copa do Mundo Fifa Brasil 2014, que privilegia a importância social do futebol. O preço médio do ingresso mais barato lá é de 18,4 libras (cerca de 70 reais), enquanto que um clube médio inglês, como o West Ham, cobra 44 libras (166 reais).

É importante acompanhar o momento atual brasileiro, que é o de construção de arenas multiuso, em que a rentabilidade passa a ser para além dos jogos de futebol, e com a proibição de certas tradições do torcedor, como ficar em pé e a presença de bandeiras e instrumentos musicais, sob o argumento de estes poderem ser arremessados em campo ou ser usados como instrumentos de agressão.

O que interessa mais são os negócios

Ao mesmo tempo, um relatório recente da Pluriconsultoria, publicado também na semana passada, apontou que o torcedor brasileiro paga o ingresso mais caro do mundo, tendo em conta a relação do valor nominal com a renda per capita. Os ingressos no Brasil custam, em média, R$ 51,74, com valores crescendo a cada ano – e ainda com a arena do Palmeiras a ser inaugurada –, apesar do nível de competitividade do nosso futebol não vir melhorando, ao contrário dos torneios citados anteriormente.

O segundo ponto deste texto vai em direção oposta: a do novo torcedor que vai ao estádio. Teoricamente, com maior capacidade de consumo, o torcedor desejado é aquele que pode comprar nas lojas que existem nas arenas, antes das partidas, adquira os produtos oficiais dos seus clubes e patrocinadores fora dos estádios e que comentem sobre o evento.

A importância da audiência nas mídias sociais vem crescendo muito, sendo elemento importante para análise do valor de uma marca tanto para o mercado publicitário quanto para o de ações. Entretanto, o Manchester United mandou e-mail para quem comprou ingresso para um amistoso pré-temporada afirmando que não se poderia levar tablets maiores que 15X10cm. Os argumentos para tal proibição são que equipamentos de tamanhos maiores que esse atrapalhariam a visão da partida e o receio de que se gravem trechos do jogo e que estes sejam colocados na internet logo em seguida, o que poderia atrapalhar os negócios de direitos de transmissão. Lembramos que essa proibição também constava no material entregue aos torcedores que compraram ingressos para a Copa.

É um momento curioso, já que em meio a uma maior possibilidade de produção de conteúdo, espaços coletivos, ainda que privados, passam a restringir a gravação de imagens e, além disso, em meio a uma sociedade incentivada ao consumo, o produto deste deve ser deixado em casa especialmente para não atrapalhar outra fonte importante de recursos, que aqui também tem prevalência sobre este “novo” torcedor – o “torcedor da selfie”, de olhar para o telão e rir mesmo com o time perdendo, que foi bastante criticado durante a Copa. Ainda que o modelo de distribuição de recursos seja o mais próximo ao ideal, a Premier League traz um histórico que, sustentado pelo medo das ações dos hooligans, não tem como objetivo o torcedor dos clubes, que mantêm a paixão pelo esporte para além do período a cada quatro anos em que o mundo todo praticamente para por conta da Copa do Mundo. O que parece interessar mais são os negócios, a ponto de mesmo o torcedor com perfil mais para consumidor ter restrições a suas práticas nos estádios.

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Anderson David Gomes dos Santos é jornalista e mestre em Comunicação