‘Não é preciso ser burro para ser de esquerda.’ Esta frase de Fernando Henrique Cardoso, na condição de presidente da República, é uma das mais corretas e bem elaboradas que ele já cunhou para o mundo jornalístico. Começo a acreditar que a frase simétrica, contemplando a direita, não vale. Estou dizendo, então, que para ser de direita é necessário ser burro? Pode não ser assim no exterior, mas, no Brasil, a condição política conservadora está indo de mal a pior.
A situação da revista Veja tem estampado isso. Os articulistas que a revista apresenta estão cada vez menos preparados. O caso de Gustavo Ioschpe salta aos olhos. O que ele escreve deixa qualquer pessoa relativamente bem informada totalmente estarrecida. Pego aqui o rabisco dele chamado ‘Errar é humanas’ (Veja, 30/06/08).
Eu vou citar as pérolas gustavianas e sigo depois com breves comentários. Segurem-se na cadeira.
‘Eu só descobri que não entendia nada de matemática quando conversava com um colega russo, no mestrado, sobre o assunto. Aquilo que para mim exigia um grande esforço mental, de montagem de equações e de tentativa de operações algébricas, para ele era visivelmente algo automático, instintivo, como a construção de uma frase em sua língua natal. (…)’
O afastamento do empírico
Sim! Ele é economista, uma área em que sem a matemática é impossível sobreviver. Mas ele diz que não sabe matemática! Agora dá para entender por que produziu aquela estatística, já denunciada por mim e outros, querendo mostrar que a ampliação de salários de professores não melhora a educação. Pronto, é isso: ele errou na estatística, é claro. Não sabe matemática.
E ele continua:
‘O problema é fundamentalmente filosófico, epistemológico: a maioria das pessoas entende a matemática como uma ferramenta que precisamos dominar para resolver alguns problemas do cotidiano. Mas a matemática não é isso. A matemática é uma linguagem que descreve o mundo. Todo o mundo físico é traduzível em números, com acuidade muito maior do que a descrição feita por palavras. Além disso, a matemática é a árvore da qual brotam os frutos das ciências exatas: física, química, biologia, estatística, engenharia, medicina – nada disso seria possível sem a matemática. (…)
Sem uma comprovação empírica, qualquer pensamento é apenas uma tese.’
Mas Gustavo, veja, meu caro, as matemáticas não se desenvolveram para então gerar as ciências, elas caminharam juntas. Além disso, sua frase ‘sem uma comprovação empírica, qualquer pensamento é apenas uma tese’ é exatamente a frase que nega o poder da matemática. Ela é exatamente a disciplina que não suporta a empiria! Ela é o afastamento do empírico, par excellence.
A Caverna de Platão
Leitor, você agüenta mais um pouco? Sim? Então, tome:
‘Eu só fui descobrir isso [que disse acima] quando já estava no mestrado. De tudo que estudei na vida – e acabei estudando, na faculdade, história, ciência política, psicologia, sociologia, economia, geologia, marketing, administração, contabilidade, crítica literária, filosofia e outras que nem me lembro mais, não apenas por desejo e curiosidade próprias, mas porque o sistema americano impõe essa multidisciplinaridade – hoje vejo que a matéria mais importante é estatística. Achava a matéria um porre quando a cursei, no primeiro ano. O que é natural, aliás: aos 18 anos, o cérebro humano está demasiadamente encharcado de hormônios para que os pensamentos possam nadar. Agora vejo que a estatística é a base de tudo, é o que possibilita a distinção entre a opinião e o fato, a aparência e a realidade (as ‘formas’ platônicas). Sem estatística não pode haver ciência exata nem ciência social.’
Viram? Eu tenho criticado o que chamei de PTE, o Pensamento Tecnocrático em Educação, que é capitaneado pelo ‘grupo da Veja‘, ‘grupo do Paulo Renato’ e, enfim, o que agora também está no MEC, com Fernando Haddad imitando a secretária de Educação de São Paulo em tudo que é conservador. O PTE é isso: a apologia da estatística. Mas não a estatística inteligente, e sim, a estatística tomada como panacéia. É uma espécie de ‘ideologia do cientificismo da estatística’. Isso é ignorância.
Gustavo é tão ignorante que ele quer resolver o problema filosófico ‘aparência versus realidade’ com estatística! Os sistemas filosóficos não resolvem o problema. Eles não apareceram para fazer isso. Eles apareceram para equacionar o problema da relação entre ilusão e aparência (se é que esse problema existe).
Platão não quis renegar o mundo existente, o aparente, para impor a todos o mundo das formas; o que ele fez foi mostrar que, como homens, vivíamos em ambos: um é o mundo inteligível, o outro é o sensível. Um mundo, nós acessamos pelo intelecto, o outro, acessamos pelos sentidos. A Caverna de Platão não é um lugar, é uma condição – carregamos nas costas nossa Caverna quase como a tartaruga carrega a casca. A tartaruga carrega a casca e pode até imaginar que teria como eliminá-la. Pode imaginar que, uma vez sem a casca, viria a se apresentar como realmente é, na sua essência de tartaruga – a tartaruga real. Mas ao perder a casca, morreria, e morreria sem ser tartaruga, e sim, como uma tartaruga desfigurada.
‘Otimismo despropositado’
Quando cometo um erro de cálculo ou de percepção e sou avisado, ou descubro o erro por mim mesmo, eu o corrijo. Assim, estou no âmbito do que a ciência faz, e também o senso comum. Agora, no âmbito da ilusão metafísica (ou no âmbito do que Marx chamava de ideologia), não posso fazer algo que se chame ‘correção’. Posso mostrar que o que é visto pelos olhos do corpo não é o correto, e este, o correto, seria visto pelos olhos da razão, mas isso não elimina a visão dada pelos olhos do corpo. Nesse sentido, não há como ‘corrigir’ uma ilusão metafísica. Por isso mesmo, cada sistema filosófico elege como ilusão coisas completamente diferentes. E, para a filosofia metafísica, a ilusão faz parte da estrutura do mundo e por isso mesmo ela não pode ser eliminada, corrigida. Para Kant, a ilusão necessária era, por exemplo, Deus. Para Marx, a ilusão necessária – a ideologia – era o fetichismo da mercadoria em associação com a reificação. Essas ‘ilusões’ não são eliminadas por ‘correção’. Muito menos por estatística!
Gustavo não entendeu nada de filosofia. E pior, não entendeu nada de estatística, pois a estatística é justamente a ‘não exatidão’ da matemática. Estatística é o mundo da probabilidade e, portanto, a introdução da não exatidão no campo que se pensa rei da exatidão.
Acabou? Não, não! Ele não pára assim, não. O meninão é um poço inesgotável de frutos de quem nasceu de onze meses. Segue mais:
‘Essas idéias me vêm à mente quando vejo que filosofia e sociologia foram incluídas como matérias obrigatórias no currículo do ensino médio. Veja só: nosso sistema educacional é um fracasso tão retumbante que, na última medição em que o desempenho dos alunos foi dividido em níveis, o SAEB de 2003 apontou que 55% dos alunos da quarta série estavam em situação crítica ou muito crítica em leitura, o que quer dizer que eram praticamente analfabetos. A maioria dos alunos que faz a prova de Matemática no SAEB acha que ‘3/4’ é 3,4, e não 0,75. Não entendem nem a notação de uma fração. Achar que esses professores, com essa qualidade, conseguirão ensinar filosofia e sociologia a esses alunos é o que os ingleses chamam de wishful thinking, um otimismo despropositado.’
A ‘leitura do mundo’
Bem, vejam que ele confunde as habilitações, ele acha que todo professor é despreparado. O professor de filosofia, que não ensina matemática, seria um despreparado. O aluno vai mal de matemática e ele culpa, de antemão, os professores de filosofia e sociologia que, aliás, nem bem começaram o serviço! Veja só como ele, em vez de se guiar por estatísticas, tem como guia o preconceito.
Só mais um pouco de gustavice, por favor. Agüente a última dose.
‘No primeiro semestre da faculdade, li um texto muito bom de Paulo Freire, em que ele dizia que era preciso read the word to read the world (ler a palavra para ler o mundo). Não sei se ele o escreveu em inglês ou se a tradução foi especialmente fortuita, mas o enunciado é verdadeiro: é impossível entender a complexidade do mundo se você não sabe ler.’
O trecho acima é significativo. Mostra como nossas elites, não raro, erram na educação dos filhos. O menino Gustavinho é rico. Foi estudar nos Estados Unidos quando ainda não tinha maturidade para tal. Lá, no exterior, o professor deu para ele ler o Paulo Freire, um brasileiro. Poderia ter lido aqui mesmo, de modo correto. Mas quis ler errado, pagando caro para tal, lá nos Estados Unidos.
Por que ele, Gustavinho, está errado? Ora, o que Paulo Freire disse é o inverso do que ele escreveu (em inglês).
Paulo Freire escreveu, é claro: lemos o mundo para depois lermos a palavra. O que Paulo Freire queria com isso, baseado no historicismo de Hegel e no pragmatismo americano, era nos fazer notar que antes de qualquer aprendizado formal, escolar, temos uma concepção de mundo adquirida a partir de nossas vivências. Isso é o que já estava em John Dewey: antes de tudo, vem a experiência (que não deve ser tomada como experimento), que então é continuamente re-significada (Rorty diz: redescrita). Então, o aprendizado escolar se dá sobre o que já aprendemos na nossa ‘leitura do mundo’. Daí a idéia freireana de insistir na prática educativa que leva a sério o que já sabemos antes de aprendermos a leitura e a escrita.
A ladainha de sempre
Ora, a conclusão que Gustavo tira do Paulo Freire, que ele copiou errado, é que precisamos aprender a ler e a escrever. Mas isso é o óbvio, ninguém pensaria o contrário. E quem iria citar um filósofo da educação, como Paulo Freire (ou qualquer outro), para dizer o que é uma evidência e um consenso do senso comum? Só um tolo.
No final do artigo ‘Errar e humanas’, Gustavo então desanda a falar mal do marxismo que estaria impregnado em professores de filosofia, e se volta contra o ensino de filosofia e sociologia na escola média. A ladainha de sempre. Mas a essa altura já perdeu toda a moral. Então, alguém que é sadio pára a leitura, não há como continuar a ler seu texto. É isso! A direita está cada vez pior.
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Filósofo, São Paulo, SP