Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Anonimato: para o bem ou para o mal?

A promessa da proteção da identidade para estimular a revelação de um conteúdo é algo antigo. Mas os novos aplicativos como o Secret desafiam a questão do uso do anonimato para gerar ofensas e ameaças. Afinal, será que a possibilidade de não se saber a autoria de algo estimula mais práticas ilícitas?

A lei brasileira (CF/88 art. 5º. Inc IV) proíbe o anonimato indiscriminado por entender que o mesmo pode gerar danos sociais. Sendo assim, pelas nossas regras, todos têm liberdade de expressão mas estão sujeitos a responder por suas declarações. Por isso, devem se identificar. Logo, aqui o anonimato é uma exceção, quando justificável, e apenas em canal apropriado para tanto.

Mas como lidar com ferramentas que permitem criação de perfis anônimos (fakes) como ocorre com o Facebook ou mesmo o compartilhamento de conteúdo sem identificação, como no caso do Secret? Será que o caminho é proibir sua comercialização, bloquear seu acesso, ou seria educar e punir aqueles que não cumprem com as regras de conduta?

Do ponto de vista do princípio da inclusão digital como direito essencial para o exercício da cidadania, trazido pela nova Lei do Marco Civil da Internet em seu art. 7º., bem como a garantia da liberdade, o segundo caminho parece uma solução mais apropriada e sustentável.

No entanto, se a alternativa é permitir com orientação, vigilância e aplicando medidas disciplinares ou mesmo jurídicas a quem faz uso inadequado, antiético ou mesmo ilegal, como garantir o conhecimento sobre o que é o certo e o errado se todos dão OK nos Termos de Uso sem ler?

O próprio Secret já está sofrendo as consequências desta atitude nacional da “não informação”, da ignorância às leis, da não leitura do que está nos contratos, de forma intencional, desejada e que leva a uma prática de insegurança jurídica generalizada, pois grande parcela dos descumprimentos às regras acontece pelo mero desconhecimento das mesmas.

Pesquisa online

A ferramenta Secret possui Termos de Uso, que exige idade mínima de 13 anos. Também possui Política de Privacidade, que deixa claro que o anonimato é relativo e que pode informar a identidade do usuário em caso de ordem judicial.

Como se não bastasse, o Secret tem, ainda, um Código de Conduta chamado de “Guia da Comunidade”, que proíbe atitudes que sejam ofensivas, agressivas ou discriminatória e fornece um canal de denúncia (legal@secret.ly) para remoção de conteúdos e punição de infratores que podem ser banidos do serviço (perfil bloqueado ou excluído).

O mais curioso é que a própria interface do aplicativo tem a seguinte afirmação: “diga algo gentil” e depois tem o botão “postar”. Ou seja, há uma vacina legal escrita na tela para demonstrar qual o propósito de uso do recurso, mas, infelizmente, o gentil do brasileiro digital está sendo a ofensa.

Portanto, todas estas medidas não puderam proteger a empresa proprietária do Secret, que é estrangeira, de sofrer medidas legais por mau uso dos seus serviços por seus usuários brasileiros.

Foi o que ocorreu quando uma decisão liminar da 5ª Vara Civil de Vitória (ES) deferiu no ultimo dia 19 de agosto, o pedido do Ministério Público do Estado do Espírito Santo para que o aplicativo Secret fosse removido das lojas virtuais que o disponibilizam.

Esta decisão que afeta não apenas quem está fazendo uso indevido da ferramenta, mas todos os demais, inclusive a própria empresa, a Apple, a Google e até a Microsoft, que lançou um aplicativo similar, o Cryptic.

Mas será que apenas proibir educa? Imagine se tivéssemos que proibir então a presença de facas nas casas devido a algum jovem poder usar a mesma para ferir outra pessoa?

Neste sentido até um lápis que seria aparentemente inofensivo pode se tornar uma arma mortal se enfiado no pescoço de outra pessoa. Nem por isso proibimos tudo só porque não conseguimos educar.

Com certeza o Ministério Público tem um papel fundamental, mas que para gerar o resultado de coibir o ilícito só indo atrás de quem o pratica, que no caso de menores de idade, especialmente no Brasil tem penas mais brandas previstas pelo Estatuto da Criança e do Adolescente.

Sendo assim, muito pior que o anonimato é o efeito da certeza da impunidade no Brasil. Isso sim gera uma crise de autoridade e faz com que jovens que deveriam usar tecnologia para seu autodesenvolvimento intelectual e social acabem distorcendo esta finalidade e geram agressão mútua.

Mas não é só isso. Estamos vendo jovens crescendo dentro de um cenário de “Lei de Talião Digital”, onde o mais popular domina os demais pelo medo, pelo receio de qual conteúdo ele vai publicar do outro e faz justiça com o próprio celular difamando os demais na internet e via aplicativos e mídias sociais.

Segundo estudo recente publicado pelo Portal Educacional da Positivo, intitulado “Esse Jovem Brasileiro” e realizado em conjunto com o psiquiatra Jairo Bouer, 16% dos alunos que responderam o questionário online, de forma anônima, já sofreram bullying virtual dos colegas.

Liberdade e educação

O estudo constatou ainda que 23% dos jovens já sofreram insultos ou outras formas de violência na web, 40% já sentiram medo por alguma situação que aconteceu na rede e 4% admitiram que evitaram ir à escola ou até sair de casa por causa de ameaças ou ofensas sofridas pela web.

A internet é hoje a terceira maior preocupação dos professores brasileiros em relação aos seus alunos – atrás apenas do rendimento escolar e das dificuldades emocionais. Estamos formando uma geração de traumatizados digitais.

Todo tipo de liberdade exige educação e um ambiente seguro para se manifestar. Neste sentido, qualquer excesso é prejudicial, seja pela falta da liberdade ou pelo abuso dela. Ainda vamos todos sofres as consequências dessa nossa delinquência digital.

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Patricia Peck Pinheiro é advogada especialista em cultura digital e inovação, autora de 14 livros sobre “Direito Digital”