Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O trovão que destrói o jornalismo

Na Alemanha, a negação do Holocausto dá cadeia. No Brasil, a negação da ditadura, ou o louvor à repressão, torturas e assassinatos políticos,não dá cadeia. Pelo contrário, garante espaço na revista semanal de maior tiragem do país. Rodrigo Constantino seria, em outra situação, o típico “reaça”a ser ignorado. Melhor seria deixá-lo se afogar em seu ódio enquanto fala para uma plateia de poucas centenas de pessoas em algum folheto de extrema-direita editado por viúvas da ditadura ou por grupelhos marginais ao estilo Carecas do ABC.

Mas, infelizmente, ele tem espaço garantido na Veja – não apenas ele,como outros damesma fina estirpe – epode destilar seu ódio sempre que quiser em busca de polêmicas fáceis na sua luta incansável contra o “politicamente correto”, muitas vezes traduzido por “direitos humanos”ou “direitos fundamentais”. É um direito fundamental não ser torturado. Mas para o nobre colunista e blogueiro liberal, as vítimas da tortura é que deviam se desculpar.

Miriam Leitão é uma jornalista que economicamente se coloca à direita do espectro político. Poderia mesmo ser chamada de liberal – em tese, a mesma ideologia professada por Constantino –, mas peca por seu passado “comunista” e por, em muitos casos, se mostrar socialmente progressista. Para a Veja, este deve ser algum tipo de crime. Após mais de 40 anos, a jornalista e economista Miriam Leitão tomou coragem e denunciou a bárbara tortura a que foi submetida pela ditadura militar. O relato é assustador, comovente e tudo que pede é solidariedade (ver “A repórter pergunta, o ministro gagueja“).

Menino mimado

Mas o nobre colunista achou que, por combater a ditadura, a hoje liberal Miriam Leitão queria instaurar uma ditadura comunista no país; logo, deveria ter se desculpado. A tortura teria sido apenas um “pagamento” por suas ambições “comunas”. Impressiona a desfaçatez de Constantino. Mas não surpreende. Adepto daquele típico liberalismo das elites brasileiras, Constantino é um saudoso da ditadura, odeia quem pensa diferente dele, mesmo que minimamente, e usa seu espaço para abusar de seu direito à liberdade de expressão, ultrapassando, inclusive, os limites da ética. Seu objetivo é o de atacar e humilhar suas presas, seus desafetos, aqueles inimigos por ele criados em sua cruzada difamatória.

De liberal tem o nome, mas na prática não passa do típico “reaça” em aberto flerte com o fascismo. E tudo isso com total e irrestrita conivência não apenas da Veja, como de outros veículos (notadamente O Globo) para os quais trabalha. Constantino vem de uma classe de “jornalistas” liberais cujo objetivo é o de “causar” é o de irritar, de tirar do sério e polemizar apenas por polemizar. Constantino, Reinaldo Azevedo e Luiz Felipe Pondé, dentre outros, são figuras que mancham o jornalismo. Atacam a esquerda, feministas, mulheres, minorias, direitos humanos apenas porque podem, porque estão em uma situação de privilégio e poder. Não há conteúdo, tampouco debate com tais figuras.

Circula pela internet um vídeo em que Constantino tenta debater economia com Ciro Gomes, mas apanha tantas e repetidas vezes que quase chegamos a sentir pena do colunista da Veja. Quase. Ao encontrar um adversário que não está em desvantagem ou que não se encaixa em seu padrão típico de ataques, sua pose desmorona, seu conhecimento se mostra torpe e a figura de menino mimado da zona sul surge com força.

Conivência e descompromisso

Mas, infelizmente, por esta posição de poder e privilégio é que não podem ser ignorados, como fazemos com panfletos de viúvas da ditadura e outros grupelhos fascistas. Não, temos de responder à altura. E não não se trata de defender a “censura”. Oras, seria censura a proibição da negação do Holocausto? Creio que não. É a garantia (ou a tentativa) de que tal evento não se repetirá baseado em sua negação. A sociedade precisa de limites para sobreviver, precisa garantir a defesa dos mais fracos, das minorias tão desprezadas pelo colunista da Veja. Da mesma forma, precisamos de memória e justiça sobre os crimes da ditadura, para que ela não mais se repita e não podemos tolerar a negação dos horrores sofridos por centenas, quiçá milhares de brasileiros e brasileiras apenas pelo prazer polemista de um Rodrigo Constantino ou de uma Veja – cuja editora, a Abril, é ligada à Naspers, empresa sul-africana que sustentava o apartheid.

O limite da liberdade de expressão recai sobre os direitos humanos, sobre o respeito à dignidade humana. Censura seria proibir que Constantino defendesse seu liberalismo torpe. Seria impedir que dissesse diariamente que a esquerda é boba e feia porque ele, como “direitista”, não conseguia “ficar” com nenhuma menina (esta menção é ao Pondé, mas cabe na situação). Mas impedir que se negue o holocausto, crimes de guerra ou os efeitos nocivos de uma ditadura cujas vítimas continuam até hoje buscando justiça é apenas zelar pelo direito destas pessoas à sua dignidade, à memória e justiça.

O lugar de Rodrigo Constantino e de tantos outros “liberais” saudosos da ditadura e intolerantes com a dor e o sofrimento alheio é em panfletos minúsculos, é em ambientes ignorados por quem efetivamente pensa, raciocina e sente alguma empatia por outros seres humanos. Não se trata de jornalismo, e sim, de ódio destilado para atingir alvos, para humilhar e fazer sofrer. Pouco importa, enfim, que o editor da revista o tenha feito retirar do ar o artigo. O dano está feito e sua incapacidade de se desculpar – mas de reafirmar que recai sobre a vítima a culpa – são suficientes para entender que o problema é ainda maior.

A tortura não pode ser louvada como instrumento por ninguém – ou tal louvação não pode ser tolerada; deve ser repudiada de maneira intransigente. E a manutenção de um colunista-barra-blogueiro que não entende este raciocínio simples é apenas conivência e demonstração de descompromisso com o jornalismo. Não é uma surpresa, no entanto.

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Raphael Tsavkko Garcia é jornalista, mestre em Comunicação (Cásper Líbero) e doutorando em Direitos Humanos (Universidad de Deusto)