Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

USP: ao gosto dos números

Números corroboram fatos – servem tanto ao gosto do jornalismo econômico quanto ao dos discursos políticos, traduzindo a realidade em percentuais, na expressão que se quer verídica da exatidão matemática. Há, no entanto, uma margem que se abre à possibilidade de leituras várias e interpretações. Números são manipuláveis, às vezes torcidos e espremidos até que digam a verdade que se deseja.

Mas é consenso que números não mentem – assim o diz Vladimir Safatle em sua coluna de terça-feira (19/8), na Folha de S.Paulo, oferecendo uma leitura em números sobre a situação de crise por que passa a Universidade de São Paulo (USP), para que o (e)leitor forme a sua própria opinião.

Em contraponto, na mesma data, em duro editorial, a mesma Folha empurra contra o muro a USP, pois que é chegado “o momento de definições” e solução dessa crise. Apresenta, por sua vez, números que comprovariam o “descalabro gerencial” que estaria a comprometer os fundos de reserva da universidade e a sua capacidade de investir. Apoia, assim, o plano de corte (expurgo, ainda que em demissões voluntárias?) de servidores e a entrega para a administração direta do Estado da unidade do Hospital Universitário (em São Paulo) e do Hospital de Reabilitação de Anomalias Craniofaciais (em Bauru, diga-se, unidade referência no país nesse atendimento) – plano apresentado pelo reitor Marco Antonio Zago como factível para “economizar 6,5% da folha até 2016”, talvez como um respiro, uma sobrevida para as contas da universidade.

Gestões duvidosas

E como números não mentem, editorial e colunista apresentam os seus dados – na verdade, dados disponíveis no site da USP, no portal da transparência, no qual é possível ver/traduzir a USP em números. E cada qual faz o seu recorte técnico nesses números, que confirmam o que se pretendeu dizer nos respectivos artigos. Safatle abrange um período mais extenso (de 1995 a 2012), enquanto o editorial atém-se ao período de 2010 a 2013, e com uma imprecisão quando diz que o número de funcionários não docentes (presumindo-se que se refiram aos servidores técnicos administrativos) cresceu 13%, quando uma conta simples mostraria um percentual de 7,81%, considerando-se os dados disponíveis no Anuário Estatístico (no já referido portal da USP), ou seja, de um número de 16.187 em 2010 para 17.451 em 2013. Os números de Safatle demonstram um declínio na contratação, pois que em 1995 eram 17.735 e em 2012 decresceram a 16.839. Também demonstraria um declínio, ainda que menor, se trabalhasse com os dados de 2013.

O editorial prefere um comparativo entre número de servidores/alunos, apontando que há algo de errado nessas contas, além dos vencimentos dos servidores terem subido expressivos 80% (só não diz de onde tirou esse percentual, nem que período representa, em tempos de economia estável) enquanto o articulista apresenta a proporcionalidade da relação aluno/professor e aluno/servidor, além do comparativo da perda (em 9,5%) do poder de compra em relação ao salário recebido por um docente em 1989, demonstrando em seus argumentos a omissão do Estado (e dos administradores/reitores da USP, nomeados pelo governador, ainda que com autonomia de gestão) com a educação pública universitária.

Não se trata só de números. São leituras distintas traduzidas em percentuais. Tampouco se trata de contradições insolúveis. Mas talvez o artigo de Safatle nos ofereça um panorama mais claro da situação de crise da USP, apresentando dados que demonstram que houve expansão da universidade e novas demandas sem o incremento dos investimentos, dos repasses do estado (na ordem de 9,57% do ICMS desde 1995, ainda que representem R$ 5 bilhões nesse exercício), além de gestões no mínimo duvidosas (embora não cite no referido artigo), a exemplo da do professor João Grandino Rodas, escolhido pelo então governador José Serra.

Intenções nem sempre louváveis

Não parece muito conveniente, no entanto, em período de franca campanha eleitoral tocar nessa questão ou desfazer alguns mitos que se constroem na mídia (talvez com a própria ajuda da Folha) sobre a universidade pública como centros de (professores/servidores) marajás ou de alunos privilegiados, ou que seja ineficaz, incapaz de gerir as próprias contas e produzir conhecimento relevante para a sociedade – como se lhe faltasse clareza e respeito ao dinheiro do contribuinte, e não passasse a comunidade acadêmica de um bando de alienados que acreditassem que dinheiro nasce em árvores do campus da Cidade Universitária, nas palavras do referido editorial.

Tal animosidade contribui muito pouco para o entendimento dessa crise e de seus desdobramentos, embora revele bastante sobre o tipo de jornalismo que a Folha apregoa-se fazer.

De qualquer forma, parece que os números não podem gerir a si mesmos e a situação pediria uma análise contextual e mais aprofundada. Para além dos números e das leituras (e usos) que se fazem deles, estão as intenções, nem sempre as mais louváveis – o risco de pretensamente defender o contribuinte atirando-se contra a universidade é o de acertar a sociedade.

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Afonso Caramano é servidor público municipal e escritor, Jaú, SP