Saturday, 23 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Por um jornalismo mais investigativo

A Folha de S.Paulo vem dando notícias, ao longo desses meses, sobre a assim chamada “crise da USP”. Publicou artigo do atual reitor da Universidade, de seu predecessor, publicou artigo de um coletivo de professores, além das opiniões de vários articulistas da própria casa. Publicou até mesmo um estudo que buscava mostrar como o pagamento de mensalidades pelos que ocupam os bancos da universidade pública poderia sanar as finanças dessa instituição. Poder-se-ia dizer, à primeira vista, que esforço não faltou para expor o tema aos leitores.

E, no entanto, as questões que estão no âmago da atual crise continuam nebulosas. Isso é fato mesmo no que diz respeito à dimensão financeira da crise – veiculada como sendo a única –, e cujas causas estariam nos proventos de um contingente exagerado de funcionários, docentes e técnico-administrativos, ativos e inativos. Exemplifico: as informações referentes ao montante do financiamento das três universidades públicas de São Paulo, que deveria ser 9,57% do ICMS, não correspondem à dotação efetiva. O inchaço dos quadros docente e de funcionários não fica de pé diante dos dados relativos ao crescimento de vagas da graduação e de pós-graduação, de novos cursos e de novos campi. A baixa produtividade da Universidade, supostamente devido à acomodação dos professores que, segundo a opinião do reitor, estariam refestelados na sua “zona de conforto” assegurada por sua estabilidade precoce e indesejável, é desmentida pelo aumento considerável das teses, das comunicações científicas, do volume de aulas, das publicações, do número de mestrados e doutorados orientados. E os cálculos estatísticos em que se apoiou o estudo que propunha a cobrança de mensalidades para sanear as finanças da Universidade estavam incorretos (fato apontado também pela ombudsman, no dia 10 de agosto: “Anatomia de um erramos“). Não é uma propalada elite que ocupa, majoritariamente, as vagas desta Universidade pública. Seus estudantes pertencem, segundo a Fuvest, preponderantemente a um estrato de renda média baixa. A lista de equívocos poderia ir além.

Falta, em todo esse episódio, assumir o que seria uma atitude interessada da Folha. Ir além da incorporação passiva das informações institucionais, como se se tratasse do único canal de representação da Universidade. O peso real e simbólico desta postura da linha editorial não é compensado com a publicação, a título de contraponto, de artigos de autores independentes, uma vez que o jornal declaradamente se isenta da responsabilidade quanto ao teor dessas contribuições autônomas.

Compromisso com a informação

Falta mostrar, através de um trabalho de fato investigativo, uma realidade um pouco mais compósita do tema das universidades públicas e das questões que sua existência, suas funções e seu financiamento envolvem, não só no momento atual, de crise aguda (em cuja retratação prevalece a tese de que sua fonte é a folha de pagamentos), mas também no que diz respeito ao próprio histórico das crises que vêm se sucedendo e a seus porquês. Falta relembrar uma matéria, publicado algum tempo atrás na própria Folha, por ocasião de uma crise anterior, em que se mostrava a extrema concentração de poder na USP, onde apenas uma parcela ínfima dos docentes participa das decisões sobre os rumos da universidade. E refletir sobre o significado dessa estrutura de poder quando se tende a tratar a posição oficial de uma minoria poderosa da Universidade como a fonte legítima das informações. Ir além de referências acríticas e impensadas sobre a “autonomia universitária” face aos fatos que a contradizem.

Explicitar, por exemplo, no referente à chamada da primeira página do jornal do dia 14 de agosto e aos artigos do caderno Cotidiano do mesmo dia, quem são, de fato, os autores das decisões encobertas pelo termo “USP”? (Cito: “USP traça plano de demissão voluntária para amenizar crise”, na primeira página, ou, no título e subtítulo do artigo da página 1 do Cotidiano: “ Em crise, USP cogita plano de demissão voluntária: proposta estudada por universidade também inclui menor jornada de professor”. Ou, ainda, no que se refere à página 3 do mesmo caderno: “USP pode transferir hospitais para Estado”. O mesmo quadro se repete hoje (19/08), quando o editorial apenas replica as informações provenientes do gabinete do sr. Reitor, somando-lhes críticas infundadas à instituição, cujos alicerces estariam corroídos pela “subordinação de sua missão acadêmica e científica à politicagem corporativista que motiva as sucessivas greves na universidade” (editorial: “USP contra o muro”, Folha de S.Paulo, 19 de agosto de 2014, p.2.). Aqui também valeria um tanto de investigação.

Desde tempos imemoriais (desde a intervenção na Universidade na época da ditadura militar), o maior cargo administrativo da USP é preenchido por indicação do governo do estado a partir de uma lista tríplice de professores “reitoráveis” organizada pelo Conselho Universitário, (órgão colegiado composto por uma porcentagem extremamente diminuta de professores, funcionários e estudantes de graduação e de pós-graduação). Antecedendo a organização dessa lista, ocorre uma assim chamada “consulta à comunidade”, mas seus resultados são quase inócuos, pouco afetando o rito oficial. Exemplifico com o ocorrido nos últimos três mandatos. No primeiro deles, da indicação majoritária, pelas três categorias, de um professor, resultou uma lista tríplice em que aquele professor sequer foi incluído; e a escolha governamental recaiu na reitora que reintroduziu as ações da PM na USP. Na consulta seguinte, um professor foi eleito pela comunidade por uma esmagadora maioria, porém o processo culminou na indicação de outro reitor – aquele responsável pela crise financeira atual e que, mesmo na lista tríplice do Conselho Universitário, não ocupava o primeiro lugar. Já nosso atual reitor foi, de fato, escolhido pela comunidade, mas com uma plataforma eleitoral que era o avesso do que ele vem praticando. Só esse aspecto já bastaria para se interrogar sobre a suposta autonomia da USP, que o noticiário sempre sugere.

Falta, enfim, à Folha, colocar-se de forma mais comprometida perante as informações veiculadas sobre uma questão que não é de pouca relevância, na medida em que envolve as condições de estudo, de trabalho e de pesquisa desenvolvidos dentro da maior universidade pública do país.

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Klara Anna Maria Kaiser Mori é arquiteta