Friday, 08 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1313

60 anos a serviço da notícia e da liberdade

Lia os jornais de madrugada, ligava para dois ou três colaboradores, chegava à redação ao meio-dia e meia, voltava direto para casa depois do trabalho. Se houve uma época em que Ruy Mesquita passava pelo clube no fim da tarde, era para conversar com o irmão, Julio de Mesquita Neto. Discutiam o conteúdo de O Estado de S. Paulo e do Jornal da Tarde, cuja direção assumiram em 1969, quando morreu o pai, Julio de Mesquita Filho.

“A minha vida é isso, sou quase um workaholic (trabalhador compulsivo)”, disse Ruy Mesquita numa entrevista à Rádio Eldorado, resumindo a rotina que vinha refazendo décadas a fio, sem tirar tempo para descanso nem nos fins de semana. Sábado e domingo eram um plantão sem descanso. Conferia a edição do dia, anotava eventuais falhas, telefonava para os editores. Dava instruções, quando discordava, mas também aceitava contra-argumentos.

Quando Julio Neto morreu em 1996, Ruy Mesquita assumiu a direção do Estado. Aumentou a carga de trabalho. Sua mesa estava sempre coberta de pilhas de papéis, que só ele era capaz de localizar. Conferia os textos a serem publicados, anotava com uma caneta o que tinhas de corrigir ou de recomendar. Suas observações eram precisas e, se reclamava, geralmente tinha razão. Nos fins de semana, lia livros sobre problemas políticos e econômicos, nada de ficção.

Esse interesse vinha do berço. Ruy Mesquita acompanhou a vida atribulada do jornal desde menino. Tinha sete anos de idade, quando o pai, Julio de Mesquita Filho, e o irmão dele, Francisco Mesquita, foram presos e exilados para Portugal porque o jornal apoiou a Revolução Constitucionalista de 1932. Voltaram menos de dois anos depois, quando Getúlio Vargas acenou com promessas de liberalização e nomeou Armando de Salles Oliveira, cunhado de Julio de Mesquita Filho, interventor de São Paulo. A trégua, no entanto, durou pouco. Com o golpe do Estado Novo em 1937, Julio de Mesquita Filho voltou ao exílio. Depois de ser preso 17 vezes, foi embarcado para Lisboa, de onde se mudou para Buenos Aires. O governo interveio no jornal e ocupou suas instalações durante mais de cinco anos – de março de 1940 a dezembro de 1945.

Ao lado do pai, Ruy Mesquita foi um dos articuladores do movimento de 1964. O jornal apoiou o golpe – ou contragolpe, ou contrarrevolução, como preferia dizer – para derrubar João Goulart, mas rompeu com o regime após a promulgação do Ato Institucional n.º 2 (AI-2). Pagou caro por sua resistência à arbitrariedade. “O preço que pagamos foi, em primeiro lugar, a vida de meu pai”, disse o jornalista, referindo-se à morte de Julio de Mesquita Filho, que morreu sete meses após a edição do AI-5.

Censura

O Estado passou seis anos sob censura. Foi apreendido em 13 de dezembro de 1968, por causa do editorial Instituições em Frangalhos, no qual Julio de Mesquita Filho denunciava a falência do regime. Durante a vigência do AI-5, o jornal não se submeteu à censura prévia que os militares impuseram à imprensa. O governo escalou censores para as oficinas, onde as matérias proibidas eram cortadas, porque também a autocensura seria inadmissível. Como não se permitia que ficasse espaço em branco, decidiu-se publicar poemas (Estado) e receitas de bolos e doces (Jornal da Tarde). Foi Ruy Mesquita quem optou pela publicação das receitas.

Em 1972, Ruy Mesquita protestou, em telegrama ao então ministro da Justiça, Alfredo Buzaid, contra a proibição de notícias, comentários e editoriais sobre uma série de assuntos. Era proibido falar, entre outros itens, de abertura política e democratização. “Senhor Ministro, ao tomar conhecimento dessas ordens emanadas de V. Sa., o meu sentimento foi de profunda humilhação e vergonha”, dizia o telegrama. Mais de uma vez, Ruy Mesquita foi processado e intimado a depor na Polícia Federal, por causa de matérias proibidas. Assim como Julio Neto no Estado, o diretor do Jornal da Tarde não se curvou às imposições da censura. Quando repórteres e redatores do jornal foram presos, Ruy Mesquita saiu em defesa deles.

“Luiz Paulo Costa, que era correspondente em São José dos Campos, deve a vida a Ruy Mesquita”, afirmou Raul Bastos, então coordenador da rede de sucursais do Estado. Torturado nas mesmas dependências do Doi-CODI, órgão de investigação e repressão da ditadura, onde o jornalista Vladimir Herzog foi assassinado, Luiz Paulo foi libertado após um telefonema de Ruy Mesquita ao ministro da Justiça, Armando Falcão.

Ainda na época de vigência do AI-5, Ruy Mesquita recebeu em casa, em junho de 1978, o então sindicalista Luiz Inácio Lula da Silva, a pedido do jornalista Luís Carta. Resultado de quase quatro horas de conversa, o encontro rendeu uma reportagem. “Ruy Mesquita, repórter de Senhor Vogue, entrevista Lula, o metalúrgico”, anunciou a chamada de abertura do texto da revista.

Liberal e democrata, como sempre se definiu, Ruy Mesquita atribuía o sucesso do jornal à coerência e fidelidade que vem mantendo ao longo de sua história, “à custa de sacrifícios materiais sofridos pela empresa e de sacrifícios pessoais sofridos pelos seus diretores”.

Prêmio

Conforme lembrou na comemoração dos 130 anos de fundação, em janeiro de 2005, “O Estado de S. Paulo nunca pôs os interesses empresariais antes dos interesses políticos – da defesa dos interesses nacionais”. Se não fosse a manutenção dessa separação rigorosa entre o interesse comercial e os ideais políticos e culturais, o Estado não teria chegado até onde chegou, afirmou Ruy Mesquita, ao receber o Prêmio Personalidade da Comunicação 2004

“Infelizmente, é esse tipo de jornalismo que sofre hoje uma terrível ameaça e pode ter a vida interrompida, daqui para a frente, pelo que chamo de ‘murdochização’ da imprensa, ou seja, a subordinação dos interesses da política editorial aos interesses do marketing dos jornais”, advertiu, em alusão ao empresário Rupert Murdoch.

Mais de 30 anos antes de suas morte, ocorrida em 21 de maio de 2013, Ruy Mesquita falava em se aposentar. Continuou trabalhando, na medida de suas forças, sempre na mesma rotina. Queixava-se da saúde frágil, porque era difícil manter o ritmo, mas estava sempre de bom humor.

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José Maria Mayrink, do Estado de S. Paulo