Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

As vidas de uma vida

Se você chegou até aqui, pode fechar o livro. Já viu muitos desenhos, leu sobre o que fiz, tem uma vaga noção de quem sou. Mas, quantas vidas existem em uma vida? O que pareciam escolhas fortuitas, revelam, a distância, surpreendente coerência. Mas… e se em vez de uma, tivesse acontecido outra coisa? Em vez de exílio, ficar? Ou não voltar? Entre caminhos que se cruzam e opções que se bifurcam, o percurso foi esse. A vida é uma só? Ou são muitas?

O que foi vivido fica registrado de muitas maneiras. Uma marca, uma cicatriz, um grafitti no muro, pode ter modificado, de alguma forma, a realidade, minha e de outros? Minha matéria-prima está ao redor: são lágrimas, sofrimento e indignação, sim, mas também alegrias e a sensação de contribuir para um mundo mais justo e feliz.

As pessoas procuram entender como acontece um desenho de humor, de onde ele vem, como ocorre, o que me levou a fazer o que faço e que caminho percorri para pensar como penso. A todas elas, a resposta mais honesta é “não sei”.

Talvez o denominador comum no meu trabalho seja sua natureza política, presente até em cartuns destinados a apenas fazer rir. Isso vem de muito longe, de um aprendizado político um tanto errático e do que ficou da formação religiosa que me faz consciente da responsabilidade social do meu trabalho. Que é uma insuficiente retribuição a um dom graciosamente recebido.

Prazer secreto

[Saul] Steinberg [1914-1999], cujos desenhos me deslumbram desde que os conheci, dizia ser uma das raras pessoas que continuaram a desenhar depois da infância. Nisso, pelo menos, Steinberg e eu empatamos. Consegui superar os obstáculos da escola formal e continuei a desenhar, pelo prazer de desenhar. Steinberg também diz que o desenho é uma forma de raciocinar, um misterioso caminho que vai do cérebro, dos olhos, até a mão que segura o lápis ou a pena. De onde vem o primeiro rabisco? Como “ocorre”? Como acontece o processo de criação?

Uma folha de papel, ainda intocada, um lápis, uma pena, um pincel, tinta. A matéria-prima de quem desenha é acessível. O papel não precisa ser especial, pode ser o que embrulhou o pão, ou um pedaço do jornal jogado fora, ou um envelope usado, um guardanapo, uma entrada de cinema esquecida no bolso – tudo pode receber o risco do lápis ou da caneta. Pena e pincel também não são imprescindíveis: o desenho que expressa uma ideia pode ser feito com um graveto, na terra ou na areia, ou com um prego que arranha o muro, ou cria o grafitti inciso na parede da cela pelo condenado. E a tinta, tanto pode ser o restinho do café que ficou na xícara, ou, dramática e teatralmente, o próprio sangue, imprimindo o que se quer comunicar.

Há, ainda, o fator tempo, sempre insuficiente, sempre impondo prazos. Na hora de fechar o jornal, a charge que não se conseguiu conceber o dia inteiro, na busca da síntese, acontece de repente, num inesperado rabisco: uma solução completamente diferente da que fora perseguida até há um minuto. A mão obedeceu ao cérebro ou está na origem do processo de criação?

Minha intenção não é produzir desenhos para serem pendurados na parede, como obras de arte. Seu objetivo é transmitir uma mensagem, o que será alcançado quando seu conteúdo for decodificado pelos milhares de leitores da publicação que os divulgou. Sempre existem limites: o espaço disponível na página, a frequência com que o desenho é publicado, a linha editorial do jornal, as idiossincrasias eventuais de tal ou qual editor. Nada disso, porém, impede o prazer do ato de desenhar.

E há uma exigência de beleza. Essa beleza está na linha que varia de intensidade, nos borrões involuntários que um tipo ou outro de papel produzem, nas cores que aleatoriamente se misturam, criando efeitos inesperados. São descobertas feitas no processo de desenhar. A beleza também se expressa na maneira como um desenho ocupa o espaço em que flui a linha, no jogo entre o cheio do traço e o vazio que lhe serve de fundo – ou de contrapeso, ou de ênfase. Essa busca se chama prazer estético, algo íntimo, secreto, que acontece em outra dimensão, à qual só almas gêmeas têm acesso.

Manusear um livro como este, folheá-lo, tocar o papel de suas páginas, descobrir suas diferentes texturas, sentir seu cheiro, avaliar seu peso, mostrá-lo a quem amo, é um prazer sem igual. Porque um livro, como um diamante, também é para sempre.

>> Depoimento de Claudius a Alberto Dines (por e-mail)

O livro pesa quase quilo e meio, mede 23 x 30cm e tem 256 páginas em couché fosco 150gr. 

Foi um parto natural, induzido por prazos alucinantes: apenas um mês para seleção dos cartuns, planejamento gráfico feito com dois talentosos designers, Chris Calvet e Cecília Costa, convite a Janio [de Freitas], [Ferreira] Gullar e [Cassio] Loredano para textos de apresentação, orelha e última capa, respectivamente – cada qual no seu ramo -; redação de textos e legendas pelo que assina estas linhas e sua respectiva tradução para o inglês (é, o livro é bilíngue) impecavelmente realizada por Mariana Ceccon Chianca, minha neta, estudante da ESDI. Uma vez entregues à Editora Sesi SP os arquivos digitais, em menos de um mês tínhamos o livro em mãos. “É o livro mais bonito que já saiu desta editora” disse Rodrigo de Faria e Silva, editor do Sesi SP, responsável por essa loucura.

O livro tem um pouco de tudo – o primeiro cartum publicado no Jornal do Brasil em 1957 – com Amilcar [de Castro] e Odylo [Costa, filho] – pouco depois, a primeira página da Manchete – sob tua direção – e trabalhos publicados nos principais jornais brasileiros – JB, Folha, Estadão, O Globo – passando também pelo Pif Paf do Millôr, pelo Pasquim, do qual sou um acidental fundador, pela Caros Amigos e pelo Le Monde Diplomatique Brasil. E tem mais: exemplos de uma produção paralela durante meus anos de exílio em Genebra e nos últimos 28 anos de existência do CECIP – Centro de Criação de Imagem Popular, do qual sou diretor. Trata-se de uma associação civil sem fins lucrativos, criada em 1986 por um grupo de amigos, entre eles alguns que você conhece: Washington Novaes, Ana Maria Machado, Ennio Candotti, Chico Alencar além de [Eduardo] Coutinho e de outros que nos deixaram, como Paulo Freire e Fernando Burmeister, ex-presidente do IAB nacional.

Já falei demais. O livro é lindo.

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Claudius Ceccon é arquiteto, designer, cartunista, escritor e ilustrador