Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O fantástico Cortázar

Nascido em 26 de agosto de 1914, o escritor argentino Julio Cortázar considerava a literatura “uma empresa de conquista verbal da realidade”. Antes das palavras, a realidade é amorfa e difusa, não apresenta formas precisas, não tem um rosto. Só as palavras lhe conferem uma fisionomia. Mas é a literatura – palavras potencializadas em um estilo – que lhe sopra vida e contorno. Em célebre ensaio sobre a situação do romance, Cortázar escreve: “A literatura vai apoderando-se paulatinamente das coisas e de certa forma as subtrai, roubando-as ao mundo”. A literatura é, pois, uma conquista do real. Cada vez que um leitor lê uma ficção, contudo, essas mesmas coisas são devolvidas ao mundo, agora potencializadas. Para Cortázar, a literatura é uma máquina de energizar e impulsionar a realidade.

Mais do que interessada nas grandes coisas e nos grandes acontecimentos, a ficção se debruça sobre as coisas próximas e os aspectos singulares do homem. Com isso, ajuda a traçar um semblante do humano, com seus paradoxos, incoerências e desacertos. “A literatura se empenha na batalha pelo indivíduo humano, vivo e presente, você e eu, aqui, agora, esta noite, amanhã”, prossegue Cortázar no mesmo ensaio, guardado em “Valise de Cronópio”, livro publicado no Brasil em 1993 pela editora Perspectiva. Os grandes temas interessam à ciência, à filosofia, às religiões. À ficção importam as miudezas que, sem alarde e sem escândalo, desenham nosso dia a dia sobre o planeta.

Para Cortázar, um mundo mudo e sem palavras está à espera da literatura para ser enfim descoberto e conhecido. Para que nos apossemos dele. No centro desse mundo, porém, está o próprio homem. Diz Cortázar: “Nada é mais importante do que o homem como tema de exploração e conquista”. A ficção é a posse do imperfeito, do incompleto, do difuso – dos pequenos sinais que desenham nossas pequenas vidas. Conquista, até, daquilo que não se deixa conquistar. Para o escritor argentino, à ficção cabe perguntar como é esse homem e por que ele é como é. Cabe interrogá-lo e agitá-lo, e não apenas representá-lo.

Enfatizava Cortázar, assim, a importância do pensamento na ficção. Sábia lição ainda hoje, tempos em que muitos escritores se guiam por padrões pragmáticos – escrevem para o mercado, pensando nas traduções para o exterior, nas adaptações para o cinema, nas listas de mais vendidos e nos prêmios. Pensando, enfim – e antes mesmo do contato com o texto vivo –, nas vantagens que a literatura pode lhes trazer. Predomina, assim, uma visão utilitária da literatura, vista, antes de tudo, como uma atividade geradora de riquezas e de bens materiais. Daí a importância de um reencontro com Julio Cortázar. Para ele, a literatura era, antes de tudo, aventura secreta e exploração íntima. “O romance supõe a procura com seu impuro sistema verbal do impuro sistema do homem.” Tudo muito distante da busca frenética do “benfeito”, do impecável e dos clichês da moda que caracteriza o contemporâneo.

Daí a importância de reler Cortázar. De voltar sempre a ele. Em vez de uma ficção clara – e a clareza tornou-se um deus contemporâneo –, Cortázar nos propôs uma literatura de grande tensão existencial, que vem menos para explicar ou para iluminar e mais para se aprofundar nas complexas coisas humanas. Uma literatura que deseja ver não o geral, mas o particular e suas feridas insubstituíveis. Em vez de se preocupar com a construção de um homem perfeito, a ficção de Cortázar nos leva a cair em nós mesmos, a nos defrontar com nossos limites e nossas insuficiências. Trata-se de uma arte que busca o sumo da existência, desprezando a performance impecável, os padrões de consagração e qualquer utilitarismo.

Aposta radical

Tudo depende, sempre, da maneira de olhar – e se há algo que Julio Cortázar nos ensinou foi a desdobrar e multiplicar nosso olhar. Daí a importância que ele atribuiu às inovações formais, instrumentos para revirar e interrogar esse homem que, visto a distância, parece sempre tão banal e tão igual. Ter um estilo é produzir certa tensão sobre seu objeto, de modo que ele se desmascare enquanto coisa singular. É tocá-lo com certa intensidade e de certa maneira, de modo que ele se revele único e insubstituível. Um romance fabuloso como “O Jogo da Amarelinha”, que o escritor argentino publicou em 1963, seria outro livro se a mesma história fosse escrita de outra maneira. Se Cortázar não tivesse optado por uma arquitetura tão arriscada e surpreendente. Admitia (ele que, mais de uma vez, se declarou “um sentimental”) que, nessa aposta na forma, se esconde uma postura romântica – uma firme escolha do que o homem tem de mais espontâneo e de mais ímpar. É, de novo, uma luta pela forma – uma luta de conquista verbal – que ele nos propôs. Escrever ficção é usar de instrumentos frágeis para se apoderar de uma realidade que é mais frágil e arredia ainda.

Por isso, para Cortázar, o escritor pode ser tudo, menos indiferente ao real. Sofreu para produzir suas ficções: adoecia, agoniava-se, sucumbia ao próprio esforço; e por isso, ao se defrontar enfim com o texto pronto, experimentava uma espécie íntima de libertação. Falava no “efeito psicoterápico” do texto, não só para quem lê, mas, sobretudo, para quem escreve. Estamos todos, sempre, em desajuste com o real. Estamos todos deslocados, enviesados – não há correspondência precisa entre o homem e seu mundo, não há coerência e uniformidade. É com esse deslocamento primordial que Cortázar trabalha. Para realizar seu ofício, o escritor se apropria desse desvio – dessa posição inclinada e torta que todos temos diante do real – para transformá-la em objeto de potência. Do que temos de imperfeição, a ficção arranca não o perfeito – porque este não lhe interessa –, mas a força do particular.

Por isso, porque perseguiu novas posições e novos olhares, Cortázar experimentou a literatura como um jogo. Um jogo árduo, mas também divertido, que o escritor joga com as peças do real. Não há um acordo, não há solução – não existe nada que se pareça com um vencedor. Jogo sem vitórias, ele é uma espécie de dança, que dinamiza nossa relação com a realidade, que a eletriza. Daí a necessidade de alguns elementos, que ele julgava fundamentais, como o humor, a ironia e a leveza. Só com eles um escritor consegue suportar a fratura que o separa do mundo – e tirar algo dela. Consegue atravessar seu texto e sobreviver.

A vida é cheia de surpresas e de choques. Dizia Cortázar – em longa entrevista a Ernesto Bermejo, publicada pela Zahar (“Conversas com Cortázar”, 2002) – que estamos todos sujeitos à ação de “invasões inexplicáveis”. Declarou a Bermejo: “Eu tenho sido invadido por concatenações instantâneas, vertiginosas, entre coisas heterogêneas que entram no campo do meu sentido. E isso acontece sempre em momentos de distração”.

Quando estamos muito lúcidos, isto é, aferrados à razão, a mente se enrijece, tornando-se uma espécie de capacete que bloqueia o contato com as interferências criativas. Defendia Cortázar, ao contrário, a importância da distração como elemento fundamental da criação literária. Necessidade de estar um tanto desatento e alheado, isto é, desarmado, para que, enfim, a realidade tome novas formas e possamos acessá-las por novas portas de entrada. É da surpresa e do choque que um escritor tira suas ficções. Daí lhe ser estranha a ideia de um esquema, de um planejamento organizado ou de um cronograma. A renovação do olhar é menos fruto de uma preparação e mais o resultado de uma desatenção. De uma falta de concentração – o que não deixa de ser outra maneira, menos mecânica e mais fértil, de se concentrar.

Cortázar defendeu a ideia de que o escritor deve estar desconcentrado, isto é, atento a erros, equívocos, enganos, interferências – elementos que ele precisa, em vez de descartar, valorizar. Sempre foi um amante do jazz, gênero musical baseado no imprevisto e no improviso. E carregava para a literatura a estratégia dos melhores jazzistas que tanto amou. Escrever não é enrijecer, mas flutuar. Não é ordenar-se, mas desordenar-se. Tudo isso, porém, se passa em torno de um núcleo vivo e inabalável que é o próprio escritor. Em vez de destruí-lo, esse estado de devaneio só o fortalece. Só com a mente em estado de flutuação e distração – e não de rigidez e concentração – o escritor consegue acessar a “intensidade máxima”, que elimina o secundário e o inútil, para chegar àquilo que só ele tem. Só assim consegue chegar ao coração de si mesmo. Consegue cair em si e em sua escrita. Para chegar a si, o escritor deve atravessar esse estado de inquietação – de aposta radical, de jogo – sem o qual seu núcleo não emerge. Um escritor deve cavar a si mesmo – com alegria, com improvisação, com ousadia – ou não conseguirá escrever nada que preste. Nada que seja verdadeiro.

Matéria ritual

Foi justamente esse contato com o inesperado que Cortázar chamou de fantástico. Quando o apontam como um autor de “literatura fantástica”, muitos se enganam imaginando que escrevia sobre monstros, bruxas, espectros. Nada menos verdadeiro. Para Julio Cortázar, o fantástico se guarda nas brechas mais estreitas do cotidiano e do comum. Ele se esconde em nosso dia a dia – ele o alimenta. O fantástico não é algo distante e ameaçador. Ao contrário, está nas miudezas, nas inquietações, nos improvisos de que nos valemos – que inventamos – para dar conta da existência. Mesmos elementos de que um escritor se serve para enfrentar sua escrita. Este é o grande desafio legado por Cortázar: precisamos nos arriscar a ver o fantástico não no fabuloso ou no extraordinário, mas em nossa pequena vida banal. É nos pequenos atos, nos atributos mais íntimos e nos improvisos mais cegos que o fantástico se esconde. O fantástico não está fora de nós, mas está dentro de nós. E esse é o desafio que ele nos legou e agora nos espera.

Disse Cortázar, ainda, a Bermejo: “Escrever, para mim, é tentar sonhar, é uma tentativa de romper barreiras. Acontece, às vezes, que ao escrever algumas janelas se abrem”. Enfatiza, assim, a necessidade da luta e o caráter de desafio que a literatura necessariamente guarda. O caráter imprevisível. Nenhum escritor escreve para repetir o já escrito. Mesmo quando o faz, como o Pierre Ménard, de Jorge Luis Borges, que reescreveu por inteiro o “Quixote”, é sempre a outro livro que ele chega. A ficção não é algo morto – não é matéria de reverência e ritual. Ao contrário, é algo vivo. Desafio maior, já que só assim ela consegue ultrapassar nossos vícios e rotinas – rasgar nossas máscaras –, nos ajudando a chegar a nós mesmos.

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Cinco cartas inéditas de Cortázar (em espanhol)

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José Castello, para o Valor Econômico