Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Viagem resulta em ótimas entrevistas

Escrever sobre a Índia é uma armadilha. Os clichês sobre o país e sua cultura são tão fortes que o primeiro impulso de quem abraça esse desafio –seja com o olhar estrangeiro ou o nativo– é acabar com todos eles. Mas quem disse que é fácil? Autores não indianos, então, raramente arranham a superfície da profunda experiência indiana. O que não torna sua escrita menos válida –nem a experiência que deu origem a ela.

Karla Monteiro foi à Índia procurar por espiritualidade –e por suas origens. E, com seu olhar de jornalista, retornou com ótimas entrevistas, parte mais rica de “Karmatopia”. As ligações entre elas, porém, raramente avançam sobre o “olhar exótico” de quem tem resistência a penetrar no admirável mundo indiano.

Há muito com o que se encantar na narrativa –especialmente para quem busca uma introdução à Índia. Porém, nos suados trajetos de trem, ou nos caóticos passeios a pé, a força dos clichês se impõe, e a voz estrangeira fala mais alto.

Em “Karmatopia” você sente mais o gosto de um cheesecake que o de “dahl”; ouve mais música eletrônica que tablas; e conhece mais gringos que indianos.

Olhar acurado

Dos personagens que ganham um capítulo exclusivo, a maioria é estrangeira. Mais ainda, virtualmente todos os amigos que Monteiro faz pela Índia são de outros lugares. É uma turma genial, que seduz o leitor. Mas o quanto essas pessoas estão realmente “descobrindo” a Índia?

Ao mesmo tempo que nos dá imagens preciosas (“Uma odalisca amarfanhada e fedorenta num harém de surfistas dourados”), alguns desabafos de Monteiro caem no lugar-comum –como quando reclama da ausência de silêncio e higiene. A feliz exceção está na sua passagem por Varanasi: cremações, “naga sadhus”, e o próprio rio Ganges desfilam num tom emocionado e honesto, sem vieses.

Em seis meses, a autora vive de severas punições corporais a uma grande paixão –não por um indiano, claro, mas por um francês.

Mas nada parece ter de fato mexido fundo com a autora. Seus relatos bebem mais em Geoff Dyer –autor inglês de “Jeff em Veneza, Morte em Varanasi”, que ela cita várias vezes– do que em Pankaj Mishra –escritor indiano, que faz retratos vibrantes da Índia moderna. Mais uma vez, o estrangeiro vence o local.

A viagem que deu origem ao livro não foi a primeira de Monteiro para a Índia –e provavelmente nem será a última. Quem sabe então ainda possamos um dia saber pelo olhar apurado da jornalista quem são, no que creem e o que pensam os próprios indianos?

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Zeca Camargo é colunista da Folha de S.Paulo