É notório o despreparo e o açodamento da imprensa para lidar com situações que exigem bom senso e comedimento. Bom senso para analisar as coisas com sabedoria e equidistância. Comedimento para não cometer as costumeiras injustiças. Um desses temas delicados diz respeito aos recorrentes casos e acusações de racismo que, quando divulgados na mídia com estardalhaço desproporcional aos fatos, dão vazão a um show de demagogia e hipocrisia de dar náuseas.
De repente, algo que sempre foi um assunto encarado como inerente aos embates esportivos, em que, como se sabe, apela-se para tudo no intuito de desestabilizar o adversário, passou a ser um tabu que transcende o próprio evento em si. Como se as manifestações obviamente primitivas e condenáveis de meia dúzia de laranjas podres contra o goleiro Aranha, no jogo da última quinta-feira na Arena do Grêmio, justificassem tanta celeuma e, em particular, todo o teatro feito pelo goleiro santista. Que, ofensas à parte, contribuiu decisivamente para a ira dos torcedores, com os quase cinco minutos de cera que promoveu para esfriar a pressão gremista. Estivesse o Santos atrás no marcador e tentando reagir, será que o goleirão santista faria aquele cinema todo retardando ainda mais o jogo ? Com todo respeito a sua compreensível revolta, duvido muito.
Longe de mim querer defender ou minimizar os insultos de fundo obviamente preconceituosos. A questão é dimensionar, enquadrar os fatos com o devido cuidado, até mesmo para definir parâmetros para permitam distinguir a efetiva ofensa discriminatória de um pseudo-racismo. Afinal, se a chamada cera, simulações e outros subterfúgios fazem parte do jogo tanto quanto os xingamentos e até coisas piores, é lícito supor que tais intercorrências devam ser assimiladas por ambos os lados. Se os atletas às vezes agem com deslealdade e truculência, como exigir que os torcedores tenham comportamento ilibado, promovam o tal fair play cobrado por todos?
E o que dizer de uma imprensa que, por miopia ou covardia, é incapaz de diferenciar tão elementar?
Proporções desmesuradas
Se vez por outra há quem extrapole, evidentemente que há que se recriminar, criticar, procurar punir os autores, como, aliás, bem ou mal tem sido feito. Não só os costumeiros conflitos entre torcidas, como casos mais simples, como arremessos de objetos nos gramados, têm sido registrados pela mídia e punidos com rigor até desproporcional pelo STJD. Não é de hoje que a equipe de auditores lideradas por Paulo Schmitt se arvora no papel de inquisidor do santo ofício, ao aplicar punições draconianas, pra variar, contra a parte mais fraca da história: os clubes. Eu disse mais fraca, e não inocente.
No presente caso, por exemplo, que culpa pode ser imputada ao Grêmio pela reação intempestiva e irracional de uma ínfima minoria, cujas manifestações, como se viu, nem de longe foram acompanhadas pelo resto do estádio? Como sói acontecer com os árbitros, que são xingados mal adentram ao gramado. Houvesse um coro ou mesmo setores inteiros compartilhando dos insultos, como ocorre principalmente na Itália, não haveria desculpa ou atenuante. Mas responsabilizar o clube por um fato isolado e que só adquiriu proporções desmesuradas por conta da valorização do goleiro Aranha – que como se viu, também reagiu com gestos provocativos –, mais uma vez é misturar alhos com bugalhos.
Ora, é notório o esforço dos clubes para garantir não só a segurança como o próprio conforto dos torcedores, investindo em estádios que estão hoje entre os melhores do planeta. Agora, quanto a educação, a índole das pessoas, o que o clube pode fazer? E o que justifica o cancelamento da segunda partida entre as duas equipes, senão a evidente predisposição a se punir o Grêmio e talvez transformar o clube num bode expiatório para expiar males maiores, arraigados na humanidade e projetados indevidamente no futebol, e que por isso não pode ser a palmatória do mundo.
Nesse quesito, o que se espera da mídia é uma contribuição no sentido de mediar e incentivar a desejada mudança de mentalidade. Mas para isso é preciso interpretar adequadamente fatos como o ocorrido na arena gremista, não deixando que um assunto tão delicado e polêmico se revista do sensacionalismo barato para consumo imediato, agravado pela visão estreita da grande maioria que transita no meio. Mesmo porque casos semelhantes fatalmente se repetirão, sabendo-se que as provocações e catimbas são como unha e carne do jogo e, portanto, fadadas a reprisar ad infinitum o chove e não molha que ora presenciamos.
Mais um motivo para ir devagar com o ardor, que o santo dá toda pinta de ser de barro.
Protocolos de julgamento
As próprias vítimas de incidentes semelhantes, não custa repetir – corriqueiros e até certo ponto banais no calor das competições -, deveriam se colocar acima de tais provocações e xingamentos. Ou seja, imunes a manifestações circunscritas ao clima de jogo, do âmbito esportivo, diferente do ambiente social. Altercações que em sendo proferidas de cabeça quente, costumam ser pesadas em qualquer lugar, seja em praças esportivas, no trânsito, em baladas e até em inocentes churrascos de fim de semana. Se formos perder as estribeiras diante das agressões verbais que rolam soltas em qualquer discussão, voltaríamos à idade das cavernas.
Com a dramatização de episódios isolados e circunstanciais, o que se vê é uma espécie de contingenciamento das ocorrências, que tanto podem passar batido, como normalmente acontece, como adquirir proporções desproporcionais de acordo com a performance dos personagens. E Aranha, convenhamos, fez seu papel muito bem, lembrando até da mensagem pacifista de Martin Luther King para justificar a veemência de sua revolta.
Daí o perigo da criação de protocolos de julgamento público regidos pela farisaica lógica midiática e criminalizados pela esquizofrênica métrica dos procuradores/inquisidores do STJD, auto-investidos de poderes para deliberar quais os xingamentos e ofensas que podem e não podem ser proferidas dentro de arenas esportivas.
Arenas em que a tônica é exatamente o acirramento de ânimos, em que toda gama de insultos vem à tona, inclusive mandar a presidente do país tomar no cu, baixaria habitualmente relevada exatamente por se saber que são locais em que o ser humano costuma extravasar seus instintos mais primitivos. Redutos nos quais ultimamente, por conta da ênfase ensejada por uma mídia ávida por factoides, chamar um negão de macaco – ainda que igualmente da boca pra fora e sob um componente emocional que nada tem a ver com a discriminação racial de cunho social – passou a ser visto e tratado como um crime hediondo.
Veio do técnico Vanderlei Luxemburgo, atualmente no Flamengo, a bala de prata que liquida o monstrengo que se quer criar a partir de conclusões apressadas e nítida forçação de barra, como ocorreu na Arena gremista: “Racismo é quando um negro é barrado num restaurante ou impedido de frequentar certos lugares. Isso que aconteceu na arena do Grêmio é mais falta de educação do que outra coisa. O racismo não está na essência do futebol”, sentenciou, sem receio de por o dedo na ferida e ao mesmo tempo, desdenhando a repercussão desmedida do caso.
Perigosa abrangência
De fato, quem se deu ao trabalho de observar com mais cuidado as imagens exaustivamente repetidas pela televisão, pode constatar que no grupelho visto chamando o goleiro do Santos de macaco, inclusive com gestos, um dos mais exaltados era justamente um negro (chamar negro de negro ainda pode?) dos mais encorpados. O que é uma clara indicação de que todo o escarcéu em torno das supostas demonstrações de racismo, bem como a própria vitimização do goleiro, estão sendo encarados muito mais pelo prisma emocional do que racional.
Em meio aos manifestos gerais de repúdio e exortações a punições rigorosas para os autores e ao próprio Grêmio, que ao que tudo indica pagará o pato, o isolado e oportuno aparte do veterano treinador – que por sinal finalmente faz um bom trabalho no Flamengo –, merece no mínimo uma reflexão mais séria e ponderada sobre a perigosa abrangência que vai adquirindo a definição de racismo. Afinal, lembra ele, tratam-se de manifestações que sempre estiveram presentes no futebol, na forma de expressões como negão, crioulo e mesmo de macaco, e que a seu ver não podem ser tratadas como racismo, mesmo quando partem da torcida.
Esse é o ponto. O que a grande maioria aceita e sempre assimilou numa boa, sem polemizar, uns e outros ultimamente passaram a encarar como ofensa, humilhações que pretendem reprimir, chutando o pau da barraca. Um direito inegável e compreensível, mas que em circunstâncias questionáveis, como se deu na Arena gremista, não justificam tanta dramatização e clamor em torno do que não passou de um incidente isolado, restrito a meia dúzia de gatos pingados, e por isso mesmo, de gravidade relativa.
Mesmo a cena mais emblemática e comprometedora, da garota gritando em alto e bom som o apodo que tanto magoou Aranha, o ponto de vista externado por Luxemburgo na mesma entrevista provavelmente também está mais próxima da realidade, ao encarar a manifestação muito mais como uma dessas atitudes impensadas, típicas da juventude. Passível de punição, sem dúvida, mas sem a maldade e a gravidade alardeada pela hipócrita e cômoda postura do politicamente correto.
Nem patricinha é
Em entrevista de uma página publicada na edição do dia 2/9 do jornal A Tribuna de Santos, o goleiro Aranha repetiu o discurso de vítima que vem proferindo desde o fatídico episódio que o transformou em celebridade mundial – pena que não pelos motivos certos, ou seja, por méritos futebolísticos.
Sim, pois ao recusar-se a adotar uma postura mais conciliadora e generosa, mesmo já de cabeça fria e reconfortado pela solidariedade geral, perdoando a garota que o ofendeu e que agora é alvo de um virtual linchamento público, com riscos até à sua integridade física, mostra não estar à altura do papel de mártir outorgado por uma mídia esportiva repleta de toupeiras.
“Eu desculpo, mas não perdoo”, sentenciou o grande homem, do alto de seu orgulho ferido, sem se importar com o inferno em que se transformou a vida da jovem Patrícia, cujo único pecado foi se deixar levar pelo clima tenso e de histeria coletiva tão familiar ao futebol. Patrícia – que nem patricinha é – mora na periferia de Porto Alegre, cresceu em meio a uma vizinhança repleta de negros, alguns dos quais até frequentava, conforme apurado pela imprensa, e que, portanto, de racista na acepção da palavra nada tem. Tem, provavelmente, a cabecinha igual à de tantos jovens desmiolados que entram em canoas furadas sem pensar na consequências.
Em suma, podia ser a filha de qualquer um dos que a julgam de forma tão implacável.
Quem nunca cometeu deslize semelhante, que atire a primeira pedra.
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Ivan Berger é jornalista