Monday, 25 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Crônicas de um filho rebelde

Lá pelos anos 1960, Jean-Paul Sartre, que com Simone de Beauvoir visitava o Brasil pela primeira vez, fez uma descoberta: este é um país surrealista. O ilustre casal estava num táxi em Brasília quando o motorista pediu licença para uma parada extra. Precisava providenciar uma entrega… um contrabando. O duplo já estava bem a gosto dos filósofos, mas o que veio em seguida deixou Sartre estupefato: o motorista contraventor era na verdade um policial fazendo bico para aumentar o salário.

Um susto para Sartre, um turista acidental nos trópicos, mas uma coisinha miúda para nós que vivemos um cotidiano não somente surrealista, mas violento e corrupto. Nada que não possamos ler nos jornais – ou ver na TV –, e em seguida mandar para os arquivos do esquecimento, porque é assim que lidamos com as notícias diárias.

Essa notícia pode, contudo, se transformar em matéria-prima para um leitor mais atilado. Do trivial ligeiro, ela pode galgar o status de peça literária, dependendo do engenho com que é trabalhada, e retornar às páginas do jornal sob um outro ângulo, na forma de crônica. Se essa notícia encontrar os olhos de um leitor como João Ubaldo Ribeiro, ela certamente conquistará a perenidade.

Como cronista de O Globo, Ubaldo tem sido um observador atento do nosso cotidiano, criticando-lhe os absurdos, as injustiças e as contradições. O resultado acaba de ser reunido em livro. Você me mata, mãe gentil traz o Ubaldo de sempre, destilando ironia certeira e fino humor. Nada de academiquês para explicar as nossas costumeiras mazelas. Combinando o tom coloquial com um rigor castiço, ele transforma temas já surrados, como a crítica à obrigatoriedade da CPMF – que ironicamente foi criada para ser transitória –, em assuntos deliciosos e hilariantes.

Mas a ironia e o humor são somente recursos que Ubaldo maneja para criticar pelo menos uma das nossas muitas idiossincrasias. Para o brasileiro, o culpado por suas próprias dificuldades é sempre o outro, e nunca ele mesmo. Os responsáveis por nossos vexames são sempre identificados na nossa herança lusa, no imperialismo ianque e no governo (o atual e o de priscas eras). Neste sentido, as crônicas de Ubaldo contêm uma pedagogia básica: nelas nos vemos de um modo diferente, ainda que a ‘lição’ possa chegar de forma arrevesada, pela lente da ironia, como neste trecho de ‘A realidade brasileira’:

‘Nós, relutantemente (às vezes sob protesto, como acontece na Barra da Tijuca), somos brasileiros, mas não fazemos nada do que os brasileiros fazem. Os brasileiros são os maus políticos, a má polícia, a má administração, o trânsito horripilante, os ladrões e assaltantes, mas nunca nós. Se não fosse a má reputação que a palavra ‘sociólogo’, não sei por que, vem adquirindo nos últimos anos, creio que seria um fértil terreno para o trabalho de um deles’.

Boas risadas

Difícil acreditar que o leitor não saberá o porquê da má reputação, como dificilmente não entenderá a ironia contida na crítica abaixo, presente na crônica ‘Muito a comemorar’:

‘Vivemos denunciando escândalos, noticiando calamidades e pedindo providências. Ou seja, como qualquer político poderá asseverar, é tudo culpa da imprensa. Pensando bem, o jornalismo é que não merece homenagem nenhuma e vai ver até que a epidemia de dengue é também causada pelo sensacionalismo da imprensa. Fechar os jornais e abolir os noticiários resolveria tudo. Por que não pensamos em soluções simples?’

Ora, já que tudo funciona às mil maravilhas neste país, o pessimismo e as más notícias só podem ser mesmo orquestrados pela imprensa. Então, que se parem as máquinas.

E assim, de crônica em crônica, o mestre baiano vai formando um painel das nossas pequenas e grandes vicissitudes. Se a mãe gentil não se sentir representada nesse livro de um filho ilustre, ou dele não for capaz de retirar algum ensinamento, que ao menos possa dar umas boas risadas – o que não é pouca porqueira, como diria Ubaldo.

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Estudante de Jornalismo da Universidade Tiradentes (SE) e editor do Balaio de Notícias (www.sergipe.com/balaiodenoticias)