Poucos assuntos científicos rivalizam com a biologia evolutiva em termos do grau de interesse que despertam entre leitores e o público em geral. Não é de estranhar, portanto, que os holofotes da mídia estejam constantemente voltados para temas e assuntos próprios dessa área – ver, por exemplo, o rol de matérias publicadas recentemente pela editoria de Ciência da Folha de S.Paulo. É preocupante perceber, no entanto, que boa parte do material produzido entre nós se caracteriza pelo tratamento superficial, pelo sensacionalismo ou pela elevada densidade de erros e mal-entendidos conceituais.
Tenho flagrado a ocorrência desses problemas em uma ampla variedade de obras, incluindo livros-textos, teses universitárias, artigos técnicos e de divulgação, além, claro, de uma grande quantidade de matérias e artigos publicados na mídia – ver, neste Observatório, os artigos “Somos todos africanos“, “A hipótese do cozimento e a evolução humana“, “Quando a ausência não é uma falha“, “Considerações acerca do envelhecimento“ , “Nem sempre é culpa da mídia“ e “Com quantos ‘efes’ se escreve ‘evolução’?“ .
Em uma tentativa de organizar, equacionar e esclarecer alguns desses problemas, este artigo traça um esboço da história do darwinismo ao longo dos últimos 150 anos. Evitei, no entanto, indicar exemplos negativos. Ênfase é dada a três períodos históricos mais ou menos distintos, embora aqui frouxamente delimitados: o darwinismo primordial (1858-1889), o neodarwinismo (1892-1910) e a síntese evolutiva (1918-1950). Autores, obras e avanços que marcaram cada período são apresentados e resumidamente discutidos. Procurei minimizar o uso de jargão técnico, mas, em caso de dúvida, o leitor interessado no assunto deveria consultar algum livro-texto de biologia evolutiva (e.g., FREEMAN & HERRON 2009).
1. Introdução
A versão original da teoria da evolução por seleção natural – talvez a mais influente de todas as teorias científicas – foi criada independentemente pelos naturalistas britânicos Charles Darwin (1809-1882) e Alfred Russel Wallace (1823-1913). Ainda na segunda metade do século 19, as ideias organizadas em torno dessa teoria passaram a ser reconhecidas como uma corrente de pensamento chamada de darwinismo. Este termo continua sendo usado hoje em dia, agora em alusão ao corpo de conhecimento estruturado a partir das ideias originalmente formuladas por Darwin e Wallace.
Em meio a outras interpretações possíveis da evolução biológica, como o neutralismo e o saltacionismo, podemos dizer que o darwinismo é uma interpretação que se notabiliza por adotar como padrão universal o acúmulo de mudanças gradativas ao longo de sucessivas gerações (GAYON 1992). Adota ainda a ideia de que tal padrão de mudança é criado predominantemente pelo processo de seleção natural operando entre indivíduos de uma mesma população.
Embora tal caracterização ressalte o papel e a importância da seleção no curso do processo evolutivo, o darwinismo não descarta a possibilidade de que outros fatores, como a deriva gênica, possam ter alguma relevância. Também não exclui a ideia de que a seleção possa operar em outros níveis da hierarquia biológica, tanto abaixo como acima do nível dos organismos individuais (e.g., entre genes ou grupos de indivíduos) – para detalhes e comentários adicionais, ver COSTA (2010).
2. O que é evolução biológica?
Os dicionários definem evolução como o ato ou efeito de evoluir. Etimologicamente, a palavra vem do latim evolutio, forma substantivada do verbo evolvere (de ex-, fora + volvere, rolar, desabrochar, abrir). Evoca, portanto, o ato ou efeito de abrir, desdobrar ou desenrolar algo que esteja fechado, dobrado ou enrolado. Nesse sentido, bem poderíamos dizer “evoluir um livro” ou “evoluir um papiro”, em vez de “abrir um livro” ou “desenrolar um papiro”, como é habitual.
Na linguagem cotidiana, tanto o verbo evoluir como o substantivo evolução costumam assumir significados diversos. Assim, não é raro ouvir expressões do tipo “a evolução do automóvel”, “o piloto fez evoluções audaciosas”, “o desempenho do atleta evoluiu positivamente” etc. No âmbito da literatura acadêmica, a palavra foi utilizada durante muito tempo em alusão ao processo de desenvolvimento individual (ontogênese), um significado mais de acordo com as suas raízes etimológicas. Em meados do século 18, por exemplo, o naturalista suíço Albrecht von Haller (1708-1777) empregava o termo para fazer referência ao processo de desenvolvimento embrionário de animais a partir de óvulos fecundados. Vários outros autores fizeram a mesma coisa. E assim foi durante muito tempo.
A adoção de um novo significado, por meio do qual o termo passou a se referir ao processo de transformação histórica de coletividades (populações e espécies), só teria início nas primeiras décadas do século 19. O naturalista e médico escocês Robert Edmond Grant (1793-1874), entusiasta defensor do lamarckismo e mentor intelectual do jovem Darwin, foi um dos primeiros a falar em evolução com o significado de transformação histórica. Em 1859, quando Darwin publicou o seu livro mais famoso, A origem das espécies, a palavra ainda era utilizada quase que exclusivamente para descrever o desenvolvimento individual. Como a principal preocupação do naturalista britânico não era essa, ele quase não usava o termo, preferindo falar em “transições graduais” ou “descendência com modificação”.
O novo significado não esteve restrito apenas a contextos biológicos. Na primeira metade do século 19, o renomado geólogo escocês Charles Lyell (1797-1875) – fonte de inspiração e, anos mais tarde, um grande amigo de Darwin – usava a palavra evolução para se referir aos padrões de mudança pelos quais a superfície da Terra teria passado ao longo das eras geológicas. Ainda em meados do século 19, o influente filósofo inglês Herbert Spencer (1820-1903) – criador da expressão “sobrevivência do mais apto” (“survival of the fittest”), em alusão ao processo de seleção natural – passou a usar o termo para se referir ao aumento de complexidade que, segundo ele, caracterizaria a história das grandes linhagens que formam o reino animal. A partir de então, a palavra começou a ser vista como sinônimo de progresso, gerando uma série de erros e mal-entendidos, alguns dos quais só viriam a ser contornados após a cristalização da síntese evolutiva, quase um século mais tarde.
Em sua acepção atual, evoluir significa simplesmente mudar, sem qualquer conotação envolvendo “melhoria” ou “progresso”. A expressão evolução biológica (ou evolução orgânica) pode ser entendida, portanto, como toda e qualquer mudança que ocorre no fundo gênico (“pool gênico”) de uma população. O xis da questão é que estamos aqui falando apenas e tão-somente de mudança, não importando se para “melhor” ou para “pior”.
3. Teorias pré-darwinianas
Quando Darwin e Wallace publicaram os seus primeiros trabalhos, a ideia de que as linhagens de seres vivos tendem a mudar com o tempo já não era bem uma novidade, embora as teorias científicas a respeito do assunto ainda fossem incipientes. Um dos primeiros a tratar o mundo vivo de uma perspectiva evolutiva foi o naturalista francês Georges-Louis Leclerc (1707-1788), mais conhecido como Conde de Buffon. Outro pioneiro foi o médico inglês Erasmus Darwin (1731-1802), avô paterno de Charles Darwin.
O primeiro conjunto de ideias a formar uma narrativa que possa ser vista como uma teoria da evolução só apareceria, no entanto, no início do século 19, graças ao trabalho do naturalista francês Jean-Baptiste de Lamarck (1744-1829). Suas ideias a respeito do assunto foram reunidas em um livro, intitulado Filosofia zoológica (Philosophiae zoologique), cuja versão original foi publicada em 1809. De acordo com Lamarck, todas as espécies viventes seriam derivadas de outras, pré-existentes e agora já extintas. Tal afirmação, que hoje pode parecer trivial, contrastava fortemente com outras opiniões correntes naquela época. Por exemplo, na opinião do influente naturalista francês Georges Cuvier (1769-1832), um dos criadores da anatomia comparada e da moderna paleontologia, os achados fósseis corresponderiam a restos ou marcas deixadas por seres vivos que já desapareceram. Essas extinções seriam provocadas por catástrofes naturais periódicas, como erupções vulcânicas e inundações. Segundo esse ponto de vista, referido como catastrofismo, o desaparecimento de espécies antigas criaria algumas “vagas”, as quais seriam então preenchidas por um novo rol de espécies. O surgimento de novas espécies, no entanto, não seria um processo meramente natural, mas dependeria da intervenção divina. Nesse sentido, o catastrofismo seria uma narrativa antievolucionista da história da vida.
A teoria de Lamarck era uma narrativa evolucionista pioneira, erguida sobre bases exclusivamente materiais. O darwinismo também seria erguido sobre bases materiais. No que, então, a teoria de Darwin e Wallace diferia da de Lamarck? A despeito de partilharem algumas características em comum, algumas diferenças são notáveis. Uma delas tem a ver com os “mecanismos” subjacentes adotados por cada teoria. Para o darwinismo, a mudança evolutiva seria conduzida principalmente pela seleção natural, um processo que se dá apenas e tão somente entre integrantes de uma mesma população. Já para Lamarck, a mudança evolutiva seria impulsionada por uma tendência inerente a todos os seres vivos, por meio da qual as formas de vida mais simples dariam origem às mais complexas. A materialização desse “potencial interno” ocorreria por intermédio de dois fenômenos: o uso e desuso das várias estruturas do corpo e a transmissão dos caracteres adquiridos ao longo da vida. Um caráter qualquer que fosse muito utilizado pelos seus portadores tenderia a se desenvolver ainda mais, enquanto aqueles que fossem pouco utilizados tenderiam a atrofiar e desaparecer. Essas mudanças seriam transmitidas aos descendentes, permitindo assim que as espécies gradativamente se ajustassem aos seus respectivos ambientes.
A despeito dessas divergências, Darwin terminou abraçando as ideias hereditárias de Lamarck, notadamente as “leis” do uso e desuso e da transmissão dos caracteres adquiridos. O naturalista britânico havia elaborado um modelo – uma versão moderna da ideia de pangênese, defendida pelo filósofo grego Hipócrates (c. 460-370 a.C.) –, o qual supostamente ajudaria a explicar a transmissão hereditária. Como um modo de testar esse seu modelo, ele durante algum tempo incentivou o jovem naturalista inglês de origem canadense George J. Romanes (1848-1894) a realizar experimentos que pudessem vir a dar sustentação à pangênese; algo, no entanto, que jamais viria a ocorrer – para detalhes e comentários adicionais, ver MARTINS (2006).
Como sabemos hoje, o “mistério” da transmissão dos caracteres hereditários começou a ser mais bem equacionado e esclarecido após 1900, com a redescoberta do trabalho do monge e naturalista austríaco Gregor Mendel (1822-1884). As ideias mendelianas ofereceram não apenas uma resposta adequada, mas também serviram como fonte de inspiração para o surgimento de uma nova e próspera disciplina científica, a genética – sobre a vida e obra de Mendel, ver HENIG (2001).
4. A carta que veio da Indonésia
O primeiro esboço público das ideias que mais tarde viriam a constituir o corpo central do darwinismo foi divulgado por meio de uma nota, intitulada “Sobre a tendência de espécies formarem variedades; e sobre a perpetuação de variedades e espécies por meios naturais de seleção”, lida em uma reunião ocorrida na The Linnean Society of London, na noite de 1/7/1858. A reunião foi demorada e houve certo clima, mas nenhum grande alvoroço.
Apresentar uma nota conjunta foi uma saída diplomática de emergência para uma situação no mínimo embaraçosa. Desde a segunda metade da década de 1830, Darwin estava trabalhando na redação de um livro, intitulado provisoriamente de Seleção natural, no qual pretendia expor em detalhes a sua teoria da evolução. Em 1858, transcorridas mais de duas décadas, ele ainda estava trabalhando no manuscrito, ora acrescentando, ora retirando material. O empreendimento parecia não ter fim. Então, em 18 de junho, em meio a graves contratempos familiares (ver DESMOND & MOORE 1995), ele recebeu uma carta de Alfred Russel Wallace, que estava em viagem de trabalho pelo sudeste da Ásia (ver, neste Observatório, o artigo “Um lugar na história“). Os dois já haviam se correspondido antes. Dessa vez, o jovem naturalista de 35 anos pedia a Darwin (então com quase 50 anos) que lesse o manuscrito que seguia em anexo e, caso encontrasse nele alguma relevância, o encaminhasse a terceiros.
Darwin ficou impressionado com o que leu: o manuscrito de Wallace continha uma descrição bastante familiar de suas próprias ideias a respeito do processo de evolução por seleção natural. Além de abalado, a coincidência o deixou profundamente preocupado – afinal, alguém que lesse o manuscrito de Wallace e, em seguida, lesse o seu livro em gestação poderia facilmente acusá-lo de plágio. Vendo o “trabalho de sua vida ruir”, ele imediatamente relatou o ocorrido a seus amigos mais íntimos, o geólogo Charles Lyell e o botânico Joseph Dalton Hooker (1817-1911), na esperança de que o impasse pudesse ser equacionado. Lyell e Hooker, que conheciam versões anteriores do manuscrito de Seleção natural, terminaram propondo uma “solução” apressada (sobre a qual, aliás, Wallace não foi previamente consultado): promover a leitura de uma nota conjunta, contendo as linhas gerais da teoria formulada independentemente pelos dois. Além disso, alguns materiais suplementares, redigidos separadamente por cada um deles, também deveriam ser incluídos. E assim foi feito.
5. Fatiando a história em três partes
Na época, o episódio da noite de 1º de julho mereceu tão pouca atenção que, ao resumir as atividades promovidas pela Linnean Society naquele ano, o presidente da sociedade chegou a comentar que nenhuma “grande descoberta, dessas que revolucionam a ciência” havia sido apresentada. O impacto e a repercussão da teoria da evolução por seleção natural só seriam ouvidos no ano seguinte, quando Darwin finalmente publicou o seu livro mais famoso, A origem das espécies – versão “abreviada e simplificada” de Seleção natural, que permaneceria para sempre como um projeto inacabado.
Darwin e Wallace nunca chegaram a ser amigos íntimos, embora tenham mantido contato pelo resto de suas vidas. Darwin, que quase não saía de casa e jamais teve de enfrentar problemas financeiros, continuou escrevendo livros e artigos sobre vários assuntos até o fim da vida. Wallace ainda trabalhou como coletor e pesquisador de campo, além de publicar inúmeros livros e artigos. Um de seus livros, intitulado Darwinismo, publicado em 1889, ajudou a selar a vinculação que já naquela época se fazia entre o nome de Darwin (e não o seu) e a teoria da evolução que ambos formularam. (O termo “wallacismo” foi usado durante algum tempo por George Romanes, mas de modo depreciativo, a saber: para ressaltar as divergências que ele via entre certos pontos de vista de Wallace e o darwinismo primordial.)
Muita coisa mudou ao longo dos últimos 150 anos e, levando em conta as mudanças mais significativas, podemos convenientemente dividir a história do darwinismo em três períodos mais ou menos distintos: o darwinismo primordial (1858 a 1889), o neodarwinismo (1892 a 1908) e a síntese evolutiva (1918 a 1950). Divisões mais ou menos parecidas podem ser encontradas na literatura (e.g., ROSE 2000). Além disso, de acordo com alguns autores contemporâneos, nós estaríamos vivendo agora a etapa de maturação de um novo período histórico, já referido algumas vezes como o período da síntese evolutiva expandida (e.g., PIGLIUCCI 2007). Essa opinião, contudo, ainda é minoritária.
6. O darwinismo primordial e o neodarwinismo
O primeiro dos três períodos históricos do darwinismo – aqui chamado de darwinismo primordial – teve início em 1858, com a divulgação da nota conjunta de Darwin e Wallace, indo até por volta de 1889, ano de publicação do livro Darwinismo, de Wallace. O período foi marcado pela publicação das seis edições de A origem das espécies, entre 1859 e 1872 – para detalhes e comentários adicionais, ver, neste Observatório, o artigo “Lendo Darwin em português“.
O darwinismo primordial tinha as suas deficiências, a mais notável das quais talvez fosse a ausência de uma teoria complementar que fosse capaz explicar a transmissão dos caracteres hereditário. (É curioso notar que essa carência não invalidou nem impediu o desenvolvimento do darwinismo. Não é, contudo, de estranhar, tendo em vista que a teoria da evolução por seleção natural é uma teoria ecológica, não uma teoria genética.) Darwin, assim como outros evolucionistas da época, era adepto da herança por mistura, uma concepção que posteriormente seria substituída pela noção de herança particulada, trazida pela genética mendeliana.
Como foi dito antes, Darwin também era adepto da concepção lamarckiana de transmissão de caracteres adquiridos. Em 1892, 10 anos após a sua morte, o naturalista e médico alemão August Weismann (1834-1914) publicaria a teoria do plasma germinativo. De acordo com essa teoria, a transmissão de caracteres hereditários só ocorre por meio de células germinativas (gametas). As demais células do corpo (ditas somáticas) não participam desse processo. A partir de então, a ideia de transmissão de caracteres adquiridos – até então adotada pelo darwinismo – começou a perder força e popularidade.
Foi nessa época que surgiu a expressão neodarwinismo, cunhado por George Romanes. O termo foi originalmente usado por ele para designar de modo desdenhoso algumas ideias divergentes que estavam proliferando no seio do darwinismo. O alvo principal eram os adeptos das concepções de Wallace e Weismann, os quais, segundo Romanes, estariam se comportando como antidarwinistas. O primeiro, sobretudo por causa de um suposto exagero na ênfase dada ao papel da seleção natural, uma posição combatida em vida pelo próprio Darwin. O segundo, notadamente por conta de suas atitudes contrárias ao lamarckismo. Na opinião de Romanes, se o próprio Darwin defendia a transmissão de caracteres adquiridos, todo e qualquer naturalista que combatesse os resquícios lamarckistas presentes no darwinismo primordial estaria se comportando como um antidarwinista.
A expressão, como se vê, foi criada para delimitar as escolas de pensamento que naquela época lutavam entre si pelo legado de Darwin. Com o tempo, porém, isso mudou. A conotação desdenhosa foi deixada de lado e o termo passou a ser usado em novos contextos. É comum hoje em dia ouvir comentários, inclusive no meio acadêmico, segundo os quais a expressão “neodarwinismo” serviria para descrever a versão corrente do darwinismo ou ao menos a versão que resultou da combinação com o mendelismo. Trata-se, a rigor, de um mal-entendido. Como veremos a seguir, para nos referirmos à combinação histórica entre darwinismo e mendelismo, o melhor seria falar em síntese evolutiva, não em neodarwinismo.
7. O darwinismo encontra Mendel
A genética talvez seja uma das poucas disciplinas científicas que teve um início mais ou menos bem definido: 1900. Naquele ano, três botânicos – o alemão Carl Correns (1864-1933), o holandês Hugo de Vries (1848-1935) e o austríaco Erich von Tschermak (1871-1962) – redescobriram de modo independente o artigo de Mendel, publicado cerca de 35 anos antes. Embora ainda haja dúvidas e discussões entre filósofos e historiadores da ciência acerca dos motivos para essas três décadas e meia de obscuridade (BRANNIGAN 1984), assim como também há dúvidas sobre o mérito relativo dos três descobridores do trabalho de Mendel (HENIG 2001), o fato é que a nova disciplina prosperou rapidamente a partir de então.
A proliferação de estudos genéticos não significou, contudo, o fim dos problemas enfrentados pelo darwinismo, notadamente a falta de uma teoria complementar a respeito da hereditariedade. Ao contrário, a situação piorou ainda mais ao longo das duas primeiras décadas do século 20: defensores do darwinismo e do mendelismo se viram em lados opostos de uma ferrenha disputa sobre a natureza fundamental das mudanças evolutivas. Ambos os lados eram capazes de concordar sobre o “fato” da evolução, mas não a respeito dos “fatores” responsáveis pelo processo evolutivo.
Nessa disputa, os defensores do darwinismo contavam com a ajuda de estudiosos da biometria (uma área híbrida, envolvendo a aplicação de métodos matemáticos em questões biológicas), incluindo os conhecidos matemáticos ingleses Francis Galton (1822-1911), primo de Darwin, e Karl Pearson (1857-1936). Considerado o criador da biometria, Galton estava particularmente interessado em resolver os impasses que o darwinismo tinha diante de questões de hereditariedade. Ele acreditava que o melhor jeito de enfrentar o problema era acumulando medições sobre toda e qualquer estrutura biológica sujeita à variação. Foi por isso que Galton se converteu em um medidor prático verdadeiramente compulsivo.
Pearson foi aluno de Galton. Antes disso, porém, ele já havia desenvolvido interesse pela aplicação de métodos estatísticos em biologia, particularmente no estudo da seleção natural. No início de sua carreira, ele foi muito influenciado por um de seus professores universitários, o zoólogo inglês W. [Walter] F. [Frank] R. [Raphael] Weldon (1860-1906) – o primeiro a usar a palavra “biometria”. A relação entre os três foi bastante frutuosa e, sozinhos ou trabalhando juntos, eles deixaram um legado dos mais expressivos. (Diversos conceitos e procedimentos estatísticos foram desenvolvidos por eles. Galton, por exemplo, concebeu a noção de desvio padrão e de distribuição normal; introduziu o uso da linha de regressão e o conceito de correlação. Pearson desenvolveu o teste de correlação, além de conceber, entre outras coisas, o teste de qui-quadrado e a análise de componentes principais. Em 1901, Galton, Pearson e Weldon criaram um novo periódico científico, Biometrika, tido ainda hoje como uma das publicações mais importantes na área.)
Os primeiros biometristas estudavam caracteres que variam de modo contínuo, como peso e altura. Por sua vez, a genética mendeliana, em seus primórdios, lidava apenas e tão-somente com caracteres que variam de modo descontínuo ou discreto (e.g., sementes lisas ou rugosas, no caso das ervilhas de Mendel).
Influenciados pelos estudos envolvendo caracteres contínuos, darwinistas e biometristas adotaram uma perspectiva gradualista da evolução. De acordo com essa perspectiva, a evolução procede pelo acúmulo de pequenas mudanças, um processo no qual a seleção natural exerceria um papel de destaque. Os geneticistas, por sua vez, influenciados pelos estudos de caracteres descontínuos, adotaram um ponto de vista que valorizava as mudanças bruscas (verde ou amarelo, lisa ou rugosa etc.), sublinhando que o mais importante seriam os efeitos de novas mutações. Entre os primeiros, além dos já citados, estava o biólogo inglês E. [Edward] B. [Bagnall] Poulton (1856-1943); entre os últimos, estavam ainda os conhecidos biólogos William Bateson (1861-1926), inglês e o primeiro a usar a palavra “genética”, e Thomas H. Morgan (1866-1945), estadunidense. Apesar de inúmeros contratempos, incluindo brigas pessoais e disputas pelo poder, não tardou muito até que o impasse (a rigor, um falso dilema) entre darwinistas e geneticistas fosse equacionado e, em boa medida, superado.
8. Modelando a evolução
Um episódio que abriu as portas para a aproximação entre os defensores da seleção natural e os estudiosos da genética ocorreu em 1908, quando o matemático inglês G. [Godfrey] H. [Harold] Hardy (1877-1947) e o médico alemão Wilhelm Weinberg (1862-1937) formularam independentemente aquela que mais tarde viria a ser chamada de princípio de Hardy-Weinberg. Embora seja bastante simples, a ponto de sua formulação matemática provavelmente não ter sido vista como um feito significativo por nenhum de seus autores (CROW 1988), o princípio de Hardy-Weinberg exerceu um papel catalisador importante para o desenvolvimento da genética de populações, um ramo do conhecimento que prosperou rapidamente a partir das primeiras décadas do século 20.
A força do princípio emana de duas generalizações. Em primeiro lugar, ao sustentar que, sob determinadas circunstâncias – cruzamentos aleatórios e um tamanho populacional suficientemente grande, além da ausência de “perturbações”, como mutação, migração e seleção –, composição do fundo gênico permanecerá inalterada. O fundo gênico é uma entidade abstrata, formada por todos os genes e alelos presentes em uma população, em dado momento. O termo deriva da expressão “genofond”, cunhada pelo naturalista russo Alexander [Aleksandr] S. Serebrovski (1884-1938), em 1926, e que mais tarde foi vertida para o inglês como “gene pool” por Dobzhansky (BURIAN 1994). Em segundo lugar, ao mostrar que as frequências são intercambiáveis – i.e., as frequências alélicas podem ser calculadas a partir das frequências genotípicas, e vice-versa. O princípio representaria uma espécie de “marco zero”: qualquer população que esteja em equilíbrio deixaria de evoluir.
Em 1918, o matemático e naturalista inglês Ronald [Aylmer] Fisher (1890-1962) publicou um artigo de importância fundamental, mostrando que caracteres mendelianos (i.e., caracteres fenotípicos cuja transmissão obedece às chamadas leis de Mendel) podem variar de modo contínuo ou quase contínuo, e não apenas aos “saltos” (ervilhas verdes ou amarelas, lisas ou rugosas etc.), como até então se imaginava. Com essa inovação, estava pavimentado o caminho para que a evolução darwiniana e a genética mendeliana pudessem enfim se aproximar. Nos anos seguintes, a aproximação se estreitou ainda mais. Além de Fisher, outros dois cientistas, o matemático e naturalista inglês J. [John] B. [Burdon] S. [Sanderson] Haldane (1892-1964) e o biólogo estadunidense Sewall Wright (1889-1988), contribuíram para isso de modo decisivo.
Graças ao trabalho desses pioneiros, a genética de populações se converteu rapidamente em uma disciplina biológica rica em modelos matemáticos (para detalhes e comentários adicionais em português, ver HARTL & CLARK 2010). O darwinismo foi contagiado por essa profusão de modelos. O conceito de evolução biológica passou a ser definido em termos mais abstratos e o curso da história evolutiva passou a ser interpretado em função do que se passa com as frequências alélicas que caracterizam o fundo gênico de populações locais. A genética de populações ocupa hoje o centro do darwinismo moderno, embora ela própria não deva ser vista como “o” darwinismo (GAYON 1992).
A aproximação, claro, não significou o fim das controvérsias nem apagou a fogueira das vaidades. Já naquela época, por exemplo, havia muita polêmica no que diz respeito à identidade e à importância relativa dos fatores responsáveis pelas oscilações nas frequências alélicas do fundo gênico. Fisher, por exemplo, foi adepto do panselecionismo, versão do darwinismo segundo a qual todos (ou quase todos) os caracteres vivos evoluem por seleção natural. (Wallace e Weismann também foram adeptos de um ponto de vista semelhante.) Wright, por sua vez, preferia ressaltar o papel e a importância das oscilações aleatórias provocadas por erros de amostragens (deriva gênica), embora não negasse a importância da seleção natural.
A genética de populações visa construir uma representação formal e rigorosa das circunstâncias sob as quais esses diversos fatores (mutação, seleção, deriva gênica etc.) podem operar. Os modelos matemáticos permitem comparar as previsões numéricas com os resultados obtidos em experimentos de laboratório, além de fazer extrapolações para situações encontradas no campo.
9. Arquitetos da síntese evolutiva
Foram necessários quase 100 anos até que a teoria da evolução por seleção natural se tornasse enfim a espinha dorsal da biologia. Esse processo histórico de sedimentação e integração, transcorrido entre 1918 e 1950, é comumente chamado de síntese evolutiva.
Duas gerações de cientistas (“geração” no sentido de afiliação intelectual, não tanto no de proximidade etária) estiveram envolvidas com a síntese evolutiva. A primeira geração incluía os já citados Ronald Fisher, J. B. S. Haldane e Sewall Wright, embora outros autores também tenham feito contribuições importantes, como os matemáticos Vladimir A. Kostitzin (1883-1963), russo, e Gustave Maléecot (1911-1998), francês. A segunda geração abrigou um grupo mais numeroso e heterogêneo de cientistas, provenientes de várias disciplinas biológicas, entre os quais caberia aqui mencionar os nomes de (ordem cronológica) Julian S. [Sorell] Huxley (1887-1975), Theodosius Dobzhansky (1900-1975), Bernhard Rensch (1900-1990), George G. [Gaylord] Simpson (1902-1984), Ernst Mayr (1904-2005) e G. [George] Ledyard Stebbins (1906-2000).
Enquanto o trabalho desenvolvido pela primeira geração foi predominantemente teórico, o da segunda foi essencialmente empírico. Em linhas gerais, a primeira geração foi responsável por incorporar o mendelismo ao darwinismo, usando para isso as ferramentas desenvolvidas pela então incipiente genética de populações. O encerramento desse processo de absorção da genética mendeliana pelo darwinismo pode ser delimitado pelo aparecimento de duas obras: a primeira edição de A teoria genética da seleção natural (1930), talvez o livro mais influente de Ronald Fisher, e As causas da evolução (1932), de J. B. S. Haldane.
A segunda geração, por sua vez, foi responsável por conectar os processos da microevolução (previamente incorporados em modelos de genética de populações, mas até então com uma base de evidências apenas incipiente) aos padrões da macroevolução (incluindo uma grande massa de dados sobre morfologia e distribuição geográfica de várias espécies). Os padrões macroevolutivos, como especiação e irradiação adaptativa, envolvendo mudanças de forma, função ou comportamento dos seres vivos, passaram a ser vistos como extrapolações de forças microevolutivas, como mutação, deriva gênica e seleção natural, os fatores capazes de alterar o fundo gênico de populações. Os termos “microevolução” e “macroevolução” foram criados pelo naturalista russo Yuri [Iurii] A. Filipchenko (1882-1930), amigo e mentor intelectual do jovem Dobzhansky, aparecendo pela primeira vez em um livro, intituladoVariação e métodos para o seu estudo (Izmenchivost’ i metody ee izucheniia), publicado em 1929 (BURIAN 1994). Cabe ressaltar, no entanto, que Filipchenko não admitia que os padrões macroevolutivos fossem simples extrapolações de processos microevolutivos, como logo em seguida argumentariam os arquitetos da síntese evolutiva. Para estes últimos, a distinção entre micro e macroevolução é uma simples questão de escala; nenhum processo macroevolutivo adicional precisa ser invocado.
Visto em retrospecto, não é difícil perceber que o trabalho fundamental coube à primeira geração. O trabalho conduzido pela segunda geração foi em boa medida complementar, acumulando e oferecendo evidências empíricas para algumas das ideias e modelos formulados pelos pioneiros da primeira geração.
10. Síntese evolutiva: um empreendimento literário?
Entre 1937 e 1950, os integrantes da segunda geração publicaram seis livros que são comumente citados como marcos da síntese evolutiva. São eles: Genética e a origem das espécies (1937), de Dobzhansky; Evolução: a síntese moderna (1942), de Huxley; Sistemática e a origem das espécies (1942), de Mayr; Tempo e modo em evolução (1944), de Simpson; Evolução acima do nível de espécie (1947), de Rensch; e Variação e evolução em plantas (1950), de Stebbins.
Quatro desses livros – os de Dobzhansky, Mayr, Simpson e Stebbins – foram publicados como volumes de uma coleção, intitulada “Columbia Biological Series”, da editora da Universidade Columbia (EUA). Os livros foram escritos a convite da editora, havendo um prazo para a entrega dos originais. O último deles só apareceu em 1950, pois Stebbins demorou a entregar o manuscrito, correndo o risco de ficar de fora, o que já havia ocorrido antes. O livro de Mayr, por exemplo, só foi encomendado depois que o primeiro autor convidado teve problemas e não conseguiu concluir o manuscrito dentro do prazo (SMOCOVITIS 1997).
Apenas os livros de autores residentes na Europa (Huxley e Rensch) foram originalmente publicados por outras editoras. Em 1959, no entanto, uma versão em inglês do livro de Rensch, cuja versão original foi publicada em alemão, apareceu como um volume adicional daquela mesma coleção. Diante disso, é difícil evitar a pergunta: que rumo a síntese evolutiva teria tomado se a editora da Universidade Columbia não tivesse encomendado essas obras? Explorar esse assunto está além dos objetivos deste artigo. Cabem aqui, no entanto, alguns comentários adicionais a respeito dessas obras.
Em primeiro lugar, vale ressaltar que o livro de Dobzhansky, como foi dito antes, teve um papel decisivo, pois se converteu em uma referência-chave para os demais integrantes da segunda geração. Além do aspecto cronológico (foi o primeiro a ser publicado), o livro tinha um conteúdo bastante inovador, tanto em termos conceituais como, principalmente, em termos de abordagem. Tais inovações tinham muito a ver com o fato de o livro oferecer algum suporte experimental para conceitos e modelos formulados pelos integrantes da primeira geração, especialmente Sewall Wright. Além disso, talvez tenha sido a primeira obra publicada a mostrar que o desenvolvimento da genética de populações dependeria também de pesquisas de campo, não apenas de trabalho teórico ou de pesquisas conduzidas em laboratório. Em segundo lugar, cabe notar que o título do livro de Huxley parece ter contribuído de modo decisivo para selar a vinculação das novas ideias a respeito da evolução com expressões contendo a palavra “síntese”. Foi justamente a partir de meados da década de 1940 que muitos autores passaram a usar a expressão “síntese evolutiva” (também chamada de “síntese moderna” ou “nova síntese”) para se referir ao que estava ocorrendo com o darwinismo.
Por fim, é importante ressaltar que os nove autores mencionados acima (três da primeira geração, seis da segunda) nunca formaram uma equipe nem sequer chegaram a trabalhar juntos, visando a elaboração de uma teoria unificada, contrastando com o que a palavra síntese possa a princípio sugerir. E não foi por falta de oportunidade: Simpson e Mayr, por exemplo, trabalharam durante vários anos em uma mesma instituição; eles, porém, mal se encontravam e um jamais se envolveu no trabalho do outro (HULL 2006). Para falar a verdade, as escaramuças entre os arquitetos da síntese evolutiva eram relativamente comuns. Basta dizer que praticamente todos os integrantes das duas gerações referidos acima em algum momento se queixaram da falta de reconhecimento às suas ideias no contexto mais geral da construção da síntese evolutiva.
11. Considerações finais
A cristalização da síntese evolutiva não significou, contudo, que a história do darwinismo estivesse concluída. Na verdade, muita coisa mudou nos últimos 60 anos.
Um marco particularmente importante ocorreu ainda em 1953, quando James Watson (nascido em 1928) e Francis Crick (1916-2004) apresentaram o famoso modelo em dupla hélice para a molécula do ácido desoxirribonucleico (ADN ou DNA, na sigla em inglês), a matéria-prima com a qual são feitos os cromossomos. Dado o impacto e as consequências do trabalho de Watson e Crick, é costume adotar o ano de 1953 como o “ano zero” da história da genética molecular, embora os primórdios da biologia molecular recuem bem mais do que isso.
Nas décadas seguintes, a genética molecular prosperaria aceleradamente, gerando uma sucessão de ideias e modelos a respeito de fenômenos fundamentais (replicação do DNA, síntese de proteína, recombinação gênica etc.) e influenciando virtualmente todas as áreas do conhecimento biológico. Todavia, como as contribuições fundamentais que resultaram na síntese evolutiva foram publicadas na primeira metade do século 20 – antes, portanto, do surgimento da genética molecular –, foi necessário algum tempo até que as inovações moleculares começassem a ser absorvidas pelos evolucionistas.
Nas décadas de 1960 e 1970, as novidades trazidas pela abordagem molecular começaram a influenciar o trabalho dos biólogos de campo, notadamente estudantes de ecologia e do comportamento animal. Desse encontro surgiram disciplinas científicas inteiramente novas, como foi o caso da genética ecológica (e.g., FORD 1964), uma área que se propõe a investigar as causas e consequências dos processos genéticos que ocorrem em populações naturais. Também surgiram diversas inovações conceituais e metodológicas, como as noções de aptidão inclusiva e coevolução; o uso da teoria dos jogos na formulação do conceito de estratégia evolutivamente estável e o modelo da Rainha Vermelha. A disseminação de certas técnicas cromossômicas ou bioquímicas (e.g., eletroforese) permitiu que a variabilidade genética de populações naturais fosse mais ampla e facilmente documentada. Passou-se a ter uma preocupação mais explícita e rigorosa com os níveis de seleção. De resto, podemos dizer que vários conceitos biológicos importantes (adaptação, aptidão, gene etc.) passaram a ser definidos de um modo mais rigoroso (para detalhes e comentários adicionais a respeito dos conceitos mencionados ao longo deste parágrafo, ver DAWKINS 1989; KREBS & DAVIES 1996; FREEMAN & HERRON 2009).
Toda essa efervescência intelectual, ao longo da segunda metade do século 20, foi muito influenciada pelos escritos de três biólogos: os ingleses William D. Hamilton (1936-2000) e John Maynard Smith (1920-2004), e o estadunidense George C. Williams (1926-2010). A obra de cada um dos três é uma poderosa combinação envolvendo inovações e refinamentos teóricos com doses generosas de trabalho empírico (ver COSTA 2005, 2010). Não seria exagero afirmar que o peso relativo que os três tiveram no desenvolvimento recente da teoria evolutiva representaria algo equivalente àquilo que a tríade Fisher-Haldane-Wright representou no início do século 20.
Todavia, não podemos encerrar essas considerações sem mencionar aqui o nome de George R. Price (1922-1975), químico estadunidense que passou os últimos anos de sua vida em Londres, onde manteve contato com Hamilton e também com Maynard Smith (ver, neste Observatório, o artigo “Vida e obra de George Price: uma introdução“ ). Personagem dos mais fascinantes, embora ainda pouco conhecido, mesmo entre os estudiosos, Price deixou um legado que impressiona: entre 1968 e 1972, ele escreveria – sozinho ou em coautoria – três artigos fundamentais que, desde então, têm ajudado a moldar os rumos da teoria evolutiva. Poucas vezes na história da ciência alguém influenciou tanto uma área do conhecimento científico tento escrito tão pouco.
Nas últimas décadas do século 20 (e.g., ENDLER & McLELLAN, 1986; GILBERT et al., 1996) e, mais recentemente, nesses primeiros anos do século 21 (e.g., KUTSCHERA & NIKLAS 2004; PIGLIUCCI 2007; SCHOENER 2011), as reivindicações a favor de uma nova reformulação da síntese evolutiva tornaram-se ainda mais explícitas e insistentes – há quem já fale, por exemplo, em favor de uma síntese evolutiva expandida. Um exame dessas reivindicações mostra que elas são precedidas por uma avaliação da situação corrente, a partir da qual duas conclusões são apresentadas. Em primeiro lugar, a síntese evolutiva, ao menos em sua concepção original, estabelecida entre 1918 e 1950, lançou mão de vários conceitos tidos hoje como obsoletos. Em segundo lugar, vários conceitos surgidos nas últimas décadas tratam de fenômenos ou processos sobre os quais a síntese evolutiva nada disse – ou nada tinha o que dizer.
Para alguns observadores, esse movimento “reformista” seria uma demonstração de fraqueza do darwinismo. Para outros, no entanto, seria justamente o contrário: uma demonstração de que o corpo de conhecimento estruturado a partir da teoria da evolução por seleção natural, originalmente proposta por Darwin e Wallace, há pouco mais de 150 anos, continua vivo, pulsante e evoluindo. Ao que tudo indica, a efervescência deverá prosseguir nos próximos anos.
Referências citadas
** BRANNIGAN, A. 1984. A base social das descobertas científicas. Rio de Janeiro, Zahar.
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** COSTA, F. A. P. L. 2005. O evolucionista voador. Ciência Hoje 213: 15.
** ——. 2010. A Mãe Natureza é uma bruxa velha malvada. Simbio-Logias 3 (5): 56-74. (Disponível aqui.)
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Felipe A. P. L. Costa é biólogo e escritor, autor, entre outros, de Ecologia, evolução & o valor das pequenas coisas (2003)