Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A capacidade de se preocupar com o outro

O mundo carece de atenção midiática em matéria de divulgação de ações edificantes realizadas pela população. No sentido de destacar os méritos coletivos, a mídia positiva tem o dever ético de tornar pública a vontade humanista de fazer o bem e promover a solidariedade. É necessário ressaltar, porém, que a projeção jornalística para nobres atitudes não se concentre em matérias cujo enfoque sejam simplesmente promover o marketing pessoal, esvaziando, assim, a virtude presente no protagonismo coletivo que viabiliza o altruísmo. O apelo individualista, sabemos, ofusca a espontaneidade doadora que motiva o nosso espírito colaborativo, propiciando, assim, um sentido negativo capaz de estimular a dimensão interesseira presente em determinadas atitudes filantrópicas.

Biblicamente, adverte-se: “Quando, pois, deres esmola, não toques trombeta diante de ti, como fazem os hipócritas, nas sinagogas e nas ruas, para serem glorificados pelos homens. Em verdade vos digo que eles já receberam a recompensa. Tu, porém, ao dares a esmola, ignore a tua mão esquerda o que faz a tua mão direita; para que a tua esmola fique em secreto; e teu Pai, que vê em secreto, te recompensará” (Mt 6.2-4). Tal procedimento ressalta que podemos essencialmente praticar boas ações, sem cair na armadilha do utilitarismo vulgar que projeta a ideia de interesse como posse ou aquisição. Ao fazer uma propaganda egocêntrica em torno do cuidado social, estamos reforçando a cultura narcisista do bom-mocismo. Nesse sentido, aprendemos, de forma distorcida, que tudo que pensamos, sentimos e fazemos é motivado pelo interesse em possuir alguma coisa.

Acreditar que só agimos porque queremos reter ou acumular demonstra flagrante miopia em relação ao que somos ou fazemos. A dádiva, o dom, a doação não são ornamentos dispensáveis da vida subjetiva. Ao descrever os interesses do indivíduo do self em linguagem técnica, o psicanalista Donald W. Winnicott dá ênfase especial a um deles: justamente a capacidade de se preocupar com o outro, expressa no “interesse de doação”.

“Acho Bem” e “Acho Mal”

A doação é a contrapartida psíquica da aquisição. Por isso, a expressão da alteridade deve ser marcada pelo desprendimento capaz de acolher o outro de forma íntegra, autêntica e respeitosa, no sentido ético do cuidado, cujo propósito se sustenta nas “razões do coração”. Aqui não basta simplesmente praticar a tolerância. Informa o cronista João Barrento, em Uma seta no coração do dia (1998), “elogiar a não-tolerância implica recusar a intolerância e, claro, a tolerância, enquanto atitudes, ou estados de espírito, marcados por uma rejeição violenta ou por uma aceitação não desejada do outro”. O autor justifica esse ousado posicionamento indo à raiz da palavra: “‘Tolerar’ significa, no uso corrente do termo, ‘suportar’, ‘aguentar’, não por vontade própria, mas por imposição das circunstâncias.” Promove-se, assim, o florescimento de uma filantropia artificial em grande escala. A mídia se coloca como positiva quando critica esse tempo de permissividade total, numa “era do vazio” em que tudo é (se diz) tolerado, visto que o exercício ativo da aceitação do outro fica sem aquilo que o viabiliza – o limite que abre para a prova da diferença.

Também se faz atuante a mídia positiva quando fundamenta notas, reportagens, entrevistas e artigos que ressaltam o “interesse de doação” que motiva a filantropia real. Filantropia é um vocábulo de origem grega que significa “amor pelo gênero humano”. Refere-se, positivamente, às práticas de apoio solidário à humanidade, sem requerer uma resposta nem nada em troca. Sem fins lucrativos ou políticos, quem se dedica à filantropia busca contribuir para o desenvolvimento de uma sociedade mais justa e equitativa, na qual todas as pessoas tenham as mesmas possibilidades de desenvolvimento. Na cobertura midiática de ações filantrópicas, é preciso contrapor a caridade à falsa benemerência, vista como ato público desejoso de notoriedade, para melhor fazer a distinção entre a prática assistencialista e a solidária. Enquanto esta objetiva amenizar as mazelas sociais a fim de liquidá-las, aquela tenta remediá-las apenas momentaneamente.

A mídia positiva, portanto, tem a importante função de valorizar merecidamente as boas práticas capazes de transformar a sociedade radicalmente, indo além da pintura de um cenário de erro absoluto. Quando a imprensa não está atenta aos fatos edificantes e aos bons exemplos, ela contribui para a impressão generalizada de que só existe inércia social. Estamos evoluindo, embora muito mais lentamente do que gostaríamos. Ao criticar sem propor soluções, o jornalismo combativo critica o que está aí e, ao mesmo tempo, passa a sensação de que não há nada o que fazer.

Editorialmente, os jornais poderiam muito bem acatar a sugestão trazida pelo educador Rubem Alves no livro O quinto poder: consciência social de uma nação (2008), a saber: “Que os jornais sejam divididos em duas seções. Uma de nome ‘Acho Bem’, em cores alegres. Outra, de nome ‘Acho Mal’, em cores sinistras. Assim, o leitor poderia escolher o seu menu: ou comidas de cheiro bom ou pratos em decomposição.” Lendo os jornais, a gente tem a impressão de que só existe no mundo o pútrido, o escabroso, o indecente, o violento, enquanto a delicadeza, quando noticiada, aparece como regime de exceção, algo além do humano até. Há coisas lindas acontecendo de forma silenciosa e invisível, iniciativas coletivas baseadas em ideais elevados, como justiça e verdade. A mídia positiva, ao trazer à baila tais feitos, contribui para que o povo seja melhor.

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Marcos Fabrício Lopes da Silva é professor da Faculdade JK, no Distrito Federal, jornalista, poeta e doutor em Estudos Literários pela Faculdade de Letras da UFMG