Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Rubens se foi, mas o Rubico ficou

Entrei na redação de A Província do Pará em maio de 1966, aos 16 anos. Pelo grande salão se espalhavam carteiras de madeira com pesadas máquinas datilográficas, manejadas com maestria (embora por “dedógrafos”). Desde o primeiro dia de trabalho comecei a competir com os repórteres que, como eu, entravam pela manhã e eram os que mais produziam.

O exemplar do dia, apanhado na portaria, era lido com avidez para fazermos a contabilidade comparativa. Quem conseguira a façanha de colocar sua matéria na primeira página, o que raramente acontecia? Ou que fosse capa de página interna, recebesse crédito (raríssimo também) ou aquele que mais tinha conseguido publicar matérias? Elas podiam chegar a 10, 12 ou mesmo mais num único dia. Trabalhava-se como remador de galé, para usar a imagem de Nelson Rodrigues.

Não existe jornalismo diário que valha a pena sem essa competição. Mas a que Manoel Pompeu Braga, Álvaro Costa, Rubens Silva e eu travávamos era sadia. Parabenizava-se o vencedor do dia, não sem prometer vencê-lo na próxima apuração. A rivalidade era olímpica porque um ajudava o outro. Fui o mais ajudado, claro. Era iniciante, “foca”, e ainda adolescente, secundarista no Colégio Paes de Carvalho.

Um dos que mais me ajudou – e mesmo me adotou – foi Rubens Silva, que morreu no mês passado, aos 85 anos. “Rubico” fazia suas matérias pagas (o “chen”, no jargão) e tinha seus “clientes”, algo que para a minha geração (com Euclides Bandeira, Sérgio Buarque, Palmério Dória, Raymundo Costa, Raimundo Pinto, Guilherme Augusto, Nélio Palheta e outros tantos) era heresia. Ainda assim, Rubens era um exímio farejador de notícias e um aplicado produtor de matérias. Batia a máquina (a espancava, seria melhor dizer) como um possesso e saía da redação como um bólido.

Quando seus interesses paralelos o impediam de tratar de algum assunto, ele o passava a quem estivesse em condições. E quando consultado sobre algo, atendia ao pedido com riqueza de detalhes e prazer, mesmo quando “entregava” um cliente. Amava o jornalismo e viveu em função desse ofício enquanto pôde. Vibrava com o sucesso dos colegas.

Certa vez, já em sua longeva coluna, logo depois do surgimento deste jornal [Jornal Pessoal], escreveu que, ao invés de ser perseguido, eu merecia era uma estátua. Fui agradecer-lhe comovido e quase o beijei (nessa época preconceituosa, homem com homem dava lobisomem e mulher com mulher, jacaré). Mas lhe pedi para esquecer. Alguém podia seguir sugestão e me fazer de estátua de concreto – vivo.

Cena felliniana

“Rubico” foi uma das pessoas mais agradáveis, alegres e interessantes que conheci. Era o que a psicologia considera “um tipo”. Certa vez ameaçou a redação inteira porque seu salário tinha sido surrupiado por alguém. Conhecedores da peça, ignoramos as bravatas e fomos atrás do pacote com dinheiro vivo, que era a forma de pagamento nessa época, na boca do caixa, sem síndromes de medo. Intacto, o pacote estava numa lixeira. Pego em flagrante, Rubens confessou: “provavelmente” ele mesmo tinha jogado seu salário no lixo, sem qualquer intenção simbólica nesse ato.

É que se ganhava muito mal. Para quem tinha família (ou famílias, plural bem enfático nas redações), era quase inevitável sair atrás de um “por fora”, com cabide num emprego público ou fazendo relações públicas e assessoria de imprensa informalmente. A atividade paralela rendia mais para quem conseguia assinar coluna, mas também quando alguma nota simpática era infiltrada no noticiário. Quem decidia sobre o que ia sair não ignorava o artifício. Pelo contrário: o “por fora” compensava o salário baixo. E ainda sujeitava o repórter a fazer matéria paga da “casa”, em que só o patrão faturava, sem precisar alertar o leitor para o que depois seria classificado por “informe publicitário”, os antigos “ineditoriais”.

As histórias de Rubens Silva ocupariam edição inteira deste jornal, garantindo alegria geral. Ele próprio ria dos seus “causos” constantes, diários. Certa vez me ofereceu carona e seguimos pelas ruas do comércio. Vários quarteirões depois, em papo embalado, perguntei pelo carro. “Que carro?”, Rubens quis saber, sinceramente interessado. “O teu, ora”, respondi. Ele perquiriu pela razão do meu interesse e o lembrei do início da jornada, quando me ofereceu a carona. Tivemos que voltar e ir atrás do carro, que ele esquecera onde deixara. Sequer lembrava-se de me ter oferecido a carona.

Outra vez, num domingo alegre na Estrada Nova, na mansarda do José Maria Leal Paes, Rubens, com octanagem alta, resolveu subir num açaizeiro, valendo-se da peçonha cabocla. Sua mulher só faltou chorar para demovê-lo da ideia, num quadro que agradaria muito a Federico Fellini filmar. Se fosse o velório, Rubens certamente pediria licença ao mestre italiano para se levantar e contar um novo “causo”, rir e voltar a dormir no seu esquife, antes de seguir em frente, deixando-nos a gozar da maravilha que foi a oportunidade de conviver com ele e ser tratado por amigo. Grande e querido amigo ele foi de nós todos, seus contemporâneos e admiradores.

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Lúcio Flávio Pinto é jornalista, editor do Jornal Pessoal; seu blog