A imprensa está descontrolada. Rasgou a ética e tornou-se marginal. A cobertura dada à jovem torcedora do Grêmio que dirigiu insultos racistas ao goleiro Aranha, do Santos, é um retrato, com técnicas do hiper-realismo, que recria um movimento medieval de caça às bruxas. Pela imprensa, ela foi acusada, apedrejada e queimada na fogueira da opinião pública. Para sempre carregará a alcunha de “a torcedora racista do Grêmio”.
Este não é o nosso papel. Quero seguir acreditando que somos melhores e maiores do que isso. Não respeitamos os direitos humanos, a privacidade, a honra e a imagem desta jovem, que cometeu um crime vergonhoso e intelectualmente primitivo, sim, mas deve ser julgada e condenada unicamente pela justiça. Não por jornalistas.
Jornalistas, aliás, que vivem metamorfoses editoriais ambulantes já que, daqui a pouco, irão transferir a sua responsabilidade de executores velados à opinião pública. O melhor, mais etéreo e confortável bode expiatório que têm. Mas aí o choque de retorno é inevitável e o paradoxo está feito: não são os jornalistas que, denodados em sua arrogância, adoram se valer do chavão de serem “formadores de opinião”? Ora, é necessário rever os códigos de ética a que estamos submetidos, pois deveríamos combater todo o tipo de perseguição e discriminação. Inclusive a produzida pela imprensa.
Não podemos expor pessoas ameaçadas, exploradas ou correndo risco de vida, tampouco identificá-las e muito menos podemos expor pessoas que, obviamente, serão alvo de ameaças. É preciso pensar no futuro e não somente no fechamento. Na tentativa de combater o racismo a imprensa perdeu o foco e ofereceu inúmeras matérias nubladas em que transformou uma jovem mulher em inimiga pública nº 1. É uma estratégia dos mais cruéis momentos da Inquisição.
Ética vira miragem
Esta jovem precisou fugir de casa. Perdeu o emprego, recebeu ameaças de morte, de estupro, teve a casa apedrejada e parcialmente incendiada, recebeu bomba caseira e tudo por conta de ter sido identificada em foto, vídeo e texto. Sua vida foi exposta, seu nome foi dado, seu endereço foi divulgado e o jornalismo – que deveria “satisfazer os aflitos e afligir os satisfeitos” – criou mais uma vítima que não irá satisfazer.
Neste caso a maior parte das coberturas foi tudo, menos jornalismo. Pois o jornalismo não deve incitar a violência, a intolerância, o arbítrio e o crime, segundo o inciso 5º do artigo 7º do Código de Ética do Jornalista Brasileiro. E se alguém acha o papo de ética uma bobagem, podemos esquecer: basta ter caráter.
Como podemos querer combater as injustiças quando nós próprios a criamos?
Poucos jornalistas fizeram valer sua profissão e buscaram o lado da jovem. Estes honraram seu nome em uma sinapse de fôlego ante a imensidão pasteurizada das coberturas gerais.
Paira no ar uma incerteza que tenta virar vocação sobre o fazer jornalismo. Quando isso acontece, a ética vira miragem insignificante ante o sol escaldante das redações. Por isso, é preciso cuidado.
******
Tiago Lobo é jornalista