Saturday, 23 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Viciados em Internet

Chen Fei está desconcertado e nervoso. Sabe que algo não encaixa, mas é incapaz de adivinhar o que se lhe avizinha. Seus pais lhe disseram que iriam passar uns dias juntos em Pequim aproveitando o inicio das férias escolares de verão, mas o centro a que foi levado é qualquer coisa, menos um lugar de lazer. Situado no extremo sul da capital chinesa, no distrito operário de Daxing, o anódino edifício que antes abrigou um instituto de tecnologia acolhe agora um numeroso grupo de 70 crianças e jovens vestidos com camisetas militares. Seu denominador comum salta à vista: óculos, ombros caídos, pescoço dobrado e mínima resistência física. São a antítese dos enérgicos soldados que trabalham aqui como monitores. Chen, nome fictício desse obeso adolescente de 16 anos, olha todos de soslaio enquanto espera no pátio que seus pais saiam de uma reunião cujo conteúdo desconhece. Começa a suspeitar que é tudo uma armadilha. E não lhe falta razão.

Em um pequeno quarto do interior do centro, sua mãe é incapaz de conter o choro quando explica a um psiquiatra o porquê da viagem a Pequim desde a província central de Henan, onde vive, situada a cerca de mil quilômetros. “O vício em Internet do nosso filho está destruindo a família. Não podemos aguentar mais. Faz dois anos que ele começou a frequentar os cibercafés para jogar em rede. Não demos importância. Era bom aluno e entendemos que ele precisava relaxar um pouco. Mas a duração das sessões foi aumentando e o jogo passou a ser diário. O rendimento na escola caiu. Tratamos de convencer os professores e colegas dele para que o afastassem desse ambiente, mas não teve jeito. Há seis meses perdeu o controle: chegou a passar mais de 20 horas ininterruptas na frente do computador”.

Foi então que a violência em casa estourou. O pai de Chen começou a lhe dar surras para proibi-lo de jogar, e o adolescente respondeu da mesma forma. Vários hematomas no corpo do progenitor refletem um drama que a família quer acabar antes que se torne uma tragédia. “Já não podemos dominá-lo”, reconhece abatido o pai. Por isso, quando um familiar lhes informou da existência de um centro pioneiro na reabilitação de viciados em Internet, eles não pensaram duas vezes. “Queremos que ele entenda o que acontece, se cure, e que acabe esse pesadelo”.

Depois de um exame exaustivo do caso, os especialistas deram o parecer: Chen deveria ser internado no centro entre três e seis meses – ou mais tempo se não responder de forma positiva – para submeter-se à terapia concebida por Tao Ran, psiquiatra e coronel do Exército Popular de Libertação, que combina disciplina militar com técnicas tradicionais para superar qualquer tipo de vício. O doutor explica que Chen será privado do uso de qualquer aparelho eletrônico, seus contatos com o exterior serão proibidos e ele terá de acatar todas as ordens que receber. E avisa que será um processo duro. Depois de um momento de dúvida, no qual reconhecem sua preocupação pela rigidez do tratamento, os pais assentem e autorizam.

É o momento de explicar a Chen o que lhe espera, então a mãe troca algumas palavras com o marido e decidem que será ela, que mantém uma relação mais amistosa com o adolescente, quem sairá e falará com ele. Os pacientes que acabam de regressar aos seus quartos no segundo andar encostam o nariz no grande vitrô do corredor que dá para o pátio. Sabem que em seguida pode acontecer uma explosão. Ao fim e ao cabo, o caso de Chen não é mais do que um dos 6.000 que passaram pelo centro desde que Tao o fundou em 2006. “São habituais as reações iniciais de violência, e a maioria tenta fugir nos primeiros 20 dias de internação. Não reconhecem que sofrem de um transtorno”, explica o próprio Tao.

Contudo, Chen é uma decepção para quem esperava um enfrentamento. Olha para a mãe com ira contida, mas não articula uma palavra. Levanta-se, entra no edifício e sobe as escadas acompanhado por um dos psicólogos do centro, que informa como será sua vida nos próximos meses. A mãe o segue a certa distância. A explosão se produz quando Chen assimila que será enclausurado, que será obrigado a seguir um estrito treinamento físico e que suas longas sessões na frente do computador acabaram. É então que dá a volta e arremete contra a mãe. “Filha da puta! Como você se atreve a fazer isso comigo?”, grita enquanto corre para bater nela. São necessários cinco trabalhadores para contê-lo, e na enfermaria levam poucos segundos para preparar um tranquilizante e correias para amarrá-lo. Felizmente Chen se acalma com um cigarro e não é necessário utilizá-las. Sua mãe, refugiada em um pequeno quarto, chora de novo.

Causa e consequência

“O vício em Internet provoca no cérebro problemas similares aos derivados do consumo de heroína. Mas geralmente é mais nociva. Porque destrói as relações sociais em todos os níveis e vai deteriorando o corpo sem que o doente perceba”, garante Tao no austero escritório que ocupa na nova sede do centro, cuja mudança terminou no fim de junho para ampliar a capacidade máxima das instalações para 130 internos. “Todos têm problemas com a vista, com as costas, e sofrem de transtornos alimentares. Além disso, descobrimos que a capacidade cerebral deles diminui 8% e que as afecções psicológicas são graves”.

Segundo esse psiquiatra chinês, que se especializou no tratamento de vícios em 1991, 90% dos pacientes que comparecem ao centro estão afundados em uma profunda depressão, 58% agridem os pais, a maioria é incapaz de manter amizades fora do ciberespaço e sofrem de desvios sexuais “derivados do consumo excessivo de pornografia”, e muitos estão em vias de cair em atividades delitivas. “Segundo estatísticas oficiais, 67% dos delitos juvenis são cometidos por viciados em Internet, que idolatram a máfia e têm dificuldade para diferenciar realidade e ficção. Também começaram a cometer crimes de sangue como os que acontecem nos Estados Unidos. E temo que esse número aumentará, porque o problema é especialmente grave na China”, indica o fundador do centro, que é subordinado ao Hospital Militar Geral de Pequim.

O gigante asiático é o país com maior número de internautas do mundo – 632 milhões em julho –, e o próprio Governo considera que 10% dos menores de idade que navegam pela Rede são viciados nela. Um estudo levado a cabo em abril de forma conjunta pela empresa chinesa de análise de mercado Eguan e o desenvolvedor de videojogos Giant Interactive concluiu que cerca de cem milhões de jovens sofrem por essa causa de algum tipo de transtorno mental, geralmente a perda do autocontrole. É uma realidade que se reflete de forma trágica regularmente, quando a imprensa repercute a morte de adolescentes que permaneceram vários dias na frente do monitor praticamente sem dormir nem comer. Os casos são tão frequentes que diferentes analistas chineses se referem aos jogos online como “heroína eletrônica”, e muitos exigem que seus efeitos nocivos sejam combatidos “como se fossem a terceira guerra do ópio”. Tao, por seu lado, calcula que a China tem atualmente cerca de 24 milhões de viciados em Internet. Uma cifra que, como acontece no resto do planeta, é mera estimativa. Não existe um padrão que defina quem sofre do vício e quem não sofre, porque cada especialista na matéria a define de forma diferente: não é como uma doença que se tem ou não se tem. Assim, fica difícil obter dados em nível mundial sobre o vício em Internet, mas se acredita, por exemplo, que um entre oito norte-americanos sofra de desordens no uso da Rede e que quase um entre três a utilize sem limite na China, Taiwan e Coreia do Sul.

Li Huaibing tem 17 anos e reconhece ser um viciado. Neste ano deveria ter feito as provas de Seleção, o temido gaokao, mas sua incapacidade para desconectar da Internet o impediu. “Abandonei a escola porque não tinha amigos e tinha enfrentamentos contínuos com os professores. Dedicava-me a usar o chat e a participar em todo tipo de fórum. A Rede me permitiu fugir de mim mesmo”. Mas não de seus pais. Como no caso de Chen, Li foi levado enganado a Pequim desde sua província natal da Mongólia Interior com o pretexto de visitar um dermatologista que ia solucionar seu problema de acne. Assim, 21 de abril foi o último dia em que tocou um teclado. Agora trata de reencontrar-se com o adolescente engraçado e alegre que foi e aceita a estrita disciplina que lhe é imposta.

O dia começa com um apito agudo às 6:30. Os meninos pulam dos beliches e, vestidos com camisetas de camuflagem, formam uma fila no corredor externo. Um dos monitores, com cara de poucos amigos e voz de sargento de ferro, vai gritando os nomes de todos eles. “Presente!”. A cena se repete outras cinco vezes durante o dia e sempre é fácil reconhecer os novos. São desafiadores: chegam tarde e se recusam a acatar as ordens. Suspiram enfastiados, olham para o outro lado e terminam respondendo com desânimo. Mas o desdém dura pouco. Têm 20 minutos para a higiene pessoal e para descer ao pátio, onde lhes espera a primeira dose de treinamento militar a 30 graus e sob a persistente camada de polução da capital chinesa.

“Ao chegar são muito altivos, mas estão em péssima condição física. Ficam arrebentados quando têm de correr ou fazer flexões. Isso os coloca no devido lugar”, explica Ma Liqiang, ex-soldado e professor de comportamento, enquanto vários adolescentes, desanimados e com os rostos enrubescidos, deixam de correr para continuar caminhando com as mãos na cintura. As sete meninas do centro passam ao lado deles, apontam-lhes com o dedo e riem. Com o orgulho ferido, tratam de retomar o ritmo sem êxito. “O objetivo da instrução é triplo: aprender a respeitar a autoridade, fortalecer o físico e criar uma rotina muito regular. No começo é difícil, mas alguns meses depois os resultados saltam à vista”.

Li reconhece que é assim. De fato, está aproveitando a internação para se fortalecer “e ficar mais atraente para as garotas”. Além dos exercícios matinais e vespertinos obrigatórios, o adolescente colocou sacos de areia de três quilos nos tornozelos, que lhe acompanham em todos os lugares. “No começo resisti a tudo. Inclusive planejei fugir, porque não suportava a falta de liberdade. Mas logo compreendi que era inútil me rebelar”. O mais difícil, afirma, é controlar as emoções e combater o tédio. “Temos terapia de grupo que serve para desabafar, aulas de diferentes tipos, e vemos as notícias das sete da noite. Mas até apagarem a luz – às dez da noite –, há muitas horas nas quais não há nada para fazer”. Na realidade, isso faz parte da estratégia dos terapeutas. Os adolescentes, encerrados sem acesso à Internet e com tempo livre, começam por ficar sozinhos em um canto sem fazer nada ou lendo e acabam interagindo com os colegas, jogando cartas ou organizando partidas de basquete, atividade na que se nota quem está há mais tempo dentro do centro, pois a forma física melhora com o exercício diário. “Sei que é parte do tratamento, que esses tempos mortos nos levam a estabelecer relações entre nós, mas é difícil. Muitos passam o dia chorando até que se adaptam ao entorno. A maioria demora a reconhecer que sofre de vício em Internet”, enfatiza Li.

Não em vão se trata de um novo problema difícil de diagnosticar e para o qual ainda não existe um tratamento padrão. Tao Ran pretende que o seu se torne o primeiro, e não apenas na China. Existem no país cerca de 300 clínicas que copiam parte do seu modelo e utilizam a disciplina militar para tratar do vício, mas Tao critica que “a maioria se limita a contratar ex-soldados e carece de supervisão”. Ele afirma que é isso que provocou as mortes registradas neste ano em vários centros quando alguns dos pacientes foram obrigados a realizar exercícios extenuantes ou sofreram castigos físicos. Por essa razão, Tao exige que o Governo regule a atividade e dê diretrizes claras a respeito. “Ainda é necessário aperfeiçoar o sistema terapêutico, mas é evidente que o problema está se tornando global e que deve ser encarado de forma científica”. O psiquiatra pretende levar seu método ao resto do mundo. Para tanto, já o publicou em 11 idiomas diferentes e frequentemente trabalha com especialistas dos cinco continentes que visitam Daxing. “A China é um bom campo de provas porque aqui o problema começou antes e se apresenta de forma mais aguda. De fato, foi a epidemia de pneumonia atípica, a SARS de 2003, que representou o ponto de inflexão no vício em Internet. A maioria dos estudantes teve de ficar em casa no momento em que a Rede tinha começado a se popularizar. Sem controle, muitos começaram a jogar em excesso. Logo depois, vários pais me pediram ajuda”.

Tao tratou de 17 adolescentes, mas fracassou em todos os casos. “Entendi que se tratava de um transtorno novo e grave, então me propus a criar um tratamento para curá-lo”. Em 2005, começou a admitir pacientes durante um mês no hospital militar em que trabalha. “A porcentagem de sucesso foi de apenas 30%, mas esse primeiro passo me ajudou a entender os mecanismos do transtorno. Em 2007 consegui que me permitissem internar os jovens por três meses no máximo, e um ano depois começamos a envolver os pais no tratamento. Isso foi fundamental para o êxito”.

Porque o vício em Internet não surge do nada. “Está intimamente relacionado com a falta de afeto e o excesso de pressão”, opina Feng Yin, psicóloga do centro. “O problema é especialmente grave na China porque a hierarquia familiar e os valores tradicionais criam um muro entre pais e filhos, o sistema educativo e o trabalhista são extremamente competitivos e a política de natalidade que restringiu a um o número de descendentes provocou, na maioria dos casos, uma grande anomalia social”. O perfil do paciente no centro de Daxing corrobora suas palavras: trata-se de um filho único (em 95% dos casos) e menino (em 90%). Há poucas meninas. No centro de Tao elas são sete: vivem separadas deles, quase não se misturam com os garotos nas atividades e, na realidade, muitas estão ali por conta de transtornos de personalidade e problemas de caráter. A idade média dos pacientes é de 17 anos (70% têm entre 15 e 19, mas há internos de 12 até 37 anos) e são descendentes de professores (31%) ou de funcionários e oficiais do Governo (29%). “Esses profissionais são os que mais pressão exercem sobre os filhos. Projetam neles suas esperanças e buscam satisfazer-se a si mesmos sem levar em conta as tendências, as aptidões e os gostos das crianças”. Assim, o vício em Internet acaba sendo tanto causa como consequência de um ambiente familiar sufocante, que resulta devastador.

“Mais tempo”

É por isso que ao menos um dos progenitores de cada paciente – a mãe em 66% dos casos – é internado no centro para submeter-se a uma terapia emocional paralela durante meses. “O objetivo é ensinar-lhes a serem pais, e às vezes é mais complicado trabalhar com eles”, lamenta a psicóloga Feng. Wang Shupei é um dos que garante ter aprendido com seus erros, embora lamente tê-lo feito tarde: “Nosso filho começou indo ao wanba – cibercafé, principalmente para jogar – de vez em quando, mas acabou perdendo o controle com apenas 11 anos. Em várias ocasiões tive de ir buscá-lo de madrugada pela cidade e chegou a passar três dias desaparecido. Foi um pesadelo”.

O filho de Wang Shupei buscou na Rede a atenção que não recebia dos pais. O garoto se sentia um herói com a metralhadora de War of Warcraftem suas mãos virtuais. Ele se recusava a soltá-la para regressar a uma existência que considera “triste”. Wang reconhece que delegou por completo sua responsabilidade educativa na escola e que se limitava a exigir bons resultados nas provas, mas se nega a crer que o vício do filho seja somente culpa sua. Com um gesto de impotência, aponta para o reiterado descumprimento da lei por parte dos wanba. “São obrigados a exigir o documento de identidade para comprovar que os usuários são maiores de idade, mais existem aqueles que não têm escrúpulos e resistem a abandonar os lucros que as crianças representam”.

Para Wang, o drama está saindo muito caro. Seu filho pertence aos 25% que não conseguem se reabilitar com a terapia de Tao. “Ele foi internado pela primeira vez em março do ano passado e passou oito meses no centro. Mas pouco tempo depois de sair voltou a jogar”. Então, há três meses regressaram a Daxing para tentar de novo. Já gastaram 70.000 yuans (cerca de 64.000 reais) na terapia, uma fortuna para esses migrantes rurais que beiram a ruína. “Temos de fazer isso pelo futuro do nosso filho e por nós mesmos. Ele cuidará de nós quando envelhecermos”.

Tao Ran diz que cada mês de tratamento custa 9.300 yuans, mas vários pais criticam o fato de que essa cifra não inclua as refeições – arroz, sopa, verduras, ovos e algum pedaço de carne –, os exames médicos e os medicamentos. Alguns garantem que a soma final pode superar os 12.000 yuans mensais, um quinto da renda média anual do país, quantia proibitiva para as classes baixas. Tao replica que o preço é justo, equivalente a um hotel de três estrelas. “Infelizmente, não temos um sistema de saúde que o cubra”, admite.

A maioria dos pais está de acordo com Wang e considera que é um sacrifício financeiro que têm de fazer pelo bem dos filhos. Acreditam que o tratamento servirá para que tenham sucesso em uma das sociedades mais cruéis do planeta. Mas Li Wenchao sabe que não será fácil. Com 22 anos, é outro reincidente do centro, e apesar de que os especialistas já lhe tenham dado alta, ele decidiu continuar em Daxing como voluntário. “Tenho medo de regressar à vida normal. Temo voltar a cair. Necessito de mais tempo até readquirir a confiança suficiente para enfrentar a vida”.

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Zigor Aldama, do El País