Monday, 23 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Realidade posta em banca

Jornalismo que se fez de contestação. Definimos assim as primeiras edições da revista Realidade, lançada em 1966 pela Editora Abril. Expôs as vísceras da sociedade na manchete; quebrando barreiras, mostrando as suas várias caras, cheias de contrastes, preconceitos e hipocrisia. Não foi uma revista que julgava a verdade ou a defendia. Jogava à sociedade aquilo ao qual fazia jus debater e “salve-se quem puder” em um país que sofria as amarguras de um governo ditatorial.

Governo esse que puniu a imprensa e restringiu temas a serem abertos à discussão pública e, tendo por dimensão o perigo do sucesso das edições da Realidade, que atingiam meio milhão de exemplares, os militares e forças conservadoras religiosas viam a necessidade de amenizar o nível dos debates postos nas bancas. Seu legado vai mais além. Assuntos nunca antes debatidos por um meio de comunicação eram estampados na capa, que fatalmente caía nas rodas de discussões, nas repartições, lares e universidades de todo o país. Dentre outras – um parto do início ao fim – fazia nascer e se firmar uma audaciosa fórmula de se fazer jornalismo.

Era preciso mostrar os fatos com aprofundamento para uma sociedade constrangida pelo medo e o fingimento – seria esse o lema da desbravadora. A mulher foi alvo da libertação do gênero oprimido pelo estereótipo da Amélia e por outros que a colocavam “muda” e sem expressão no meio social. A capa defendia a mulher, mostrando a imagem e dando voz, desvendando sonhos de um novo ser que nascia na sociedade, com suas ideias e conquistas. A uma garota de programa era dado falar como ser social; cotidiano nas noites de trabalho; o mundo paralelo de uma prostituta podia ser desvendado pelo grande público, emergido no mar do preconceito – que, abrindo parênteses em comparação com os dias de hoje – tendem a se esconder e aparecer em várias circunstâncias.

As capas eram armas, ao qual tinham efeitos contrários aos que a ela apontavam o olhar. O espanto – como se tomado de assalto – era comum ou inevitável para quem a fitasse nas bancas. Investidas tentavam quebrar os paradigmas. O negro, como encanto de cor, mas também gente na roda dos brancos, constituía pontos de confronto ao preconceito de raça, crenças e ideias.

Espólio indecifrável

Por linhas e imagens que vinham de bocas nunca dadas a falar – o espetaculoso ou chocante – em Realidade era simplesmente real. O seu ineditismo é um marco do jornalismo investigativo, sondável e sensível aos temas que necessitavam ser debatidos e que – em uma única leva – despertavam a curiosidade da sociedade. As folhas tinham que levar a provocação, a qual forçasse os ledores a pensar e suscitar um direcionamento opinativo.

Na realidade, o que se queria mesmo era vender revistas. Queriam vender, sim! O mercado da notícia não foge à regra do capitalismo. Contudo, o conteúdo que se debruçava em cada página de Realidade não era brinde, existia ali a qualidade jornalística, em cada fotografia; em textos arrebatadores; nas reportagens aprofundadas que traziam o novo, não somente dos fatos, mas naquilo que pudesse chocar a sociedade e, consequentemente, gerar uma reação diante dos fatos. O proibido, que era discutido apenas por parcelas da população entre portas fechadas, Realidade ia na contramão e jogava nas bancas o assombro.

Grandes nomes estavam escrevendo em letras garrafais a possibilidade de uma nova realidade para a imprensa brasileira. José Hamilton Ribeiro, Carlos Azevedo, Eurico Andrade, Audálio Dantas, Múcio Borges da Fonseca, Roberto Freire, Carlos Drummond de Andrade, Nélson Rodrigues, Adoniran Barbosa, dentre outros monstros sagrados da literatura e do jornalismo, assinavam os textos antológicos.

Por sua ousadia em fazer jornalismo opinativo e investigativo, Realidade não sobreviveria às investidas dos militares, que podavam suas folhas com mais veemência a cada nova tiragem. Em suas últimas idas as bancas, suas folhas já não continham a mesma pigmentação do verde de outrora. O sinal estava fechado para crítica, para o polêmico. Realidade agora era mais fria e sua saída dos mostruários era lenta, não batendo os mesmos recordes.

Sendo barrada constantemente pela censura, e havendo que maneirar nas reportagens, a revista definhava nas bancas. Diante disso, o Grupo Abril, aos mandos de Roberto Civita, não via mais vantagens em continuar com a revista em circulação. Em 1976, foi decretado o fim da Realidade. As folhas do magazine circularam por dez anos, deixando uma grande contribuição para sociedade e indecifrável espólio para o jornalismo brasileiro.

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Francisco Julio Xavier é jornalista