Wednesday, 18 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

O baixo nível da campanha

Há tempos tornou-se frequente, no jornalismo brasileiro, uma crítica generalista à internet, tida e descrita como “terra de ninguém”, meio de expressão de ódios represados e ataques pessoais. As caixas de comentário dos portais e dos jornais e a correspondência eletrônica endereçada aos jornalistas seria a prova cabal do baixo nível.

O choque de Chico Buarque de Hollanda ao defrontar-se, pela primeira vez, com a agressividade na rede tem sido citado de forma recorrente por profissionais de imprensa como exemplo de que estão certos: para muitos, durante um longo período, um ídolo quase unânime, exemplo de beleza, talento e combatividade, o compositor de “Apesar de você” descobriu que um número não desprezível de internautas o considera um velho caquético e merecedor das piores pragas e impropérios. Reagiu com humor.

Esvaziamento da política

Durante anos, enxerguei nessa crítica à internet um misto de parcialidade (pois só retrata o lado negativo da web), preguiça (de pesquisar, descobrir e valorizar suas fantásticas possibilidades, comparativamente maiores) e, sobretudo, orgulho ferido de jornalistas contra o meio que lançou a imprensa e a mídia, de modo geral, em uma dupla crise: comercial, graças à diversidade e ao volume de informação oferecida, muitas vezes gratuitamente; e de credibilidade, já que ficou muito mais fácil investigar e divulgar as omissões, armações e erros midiáticos, bem como desvendar os interesses que eventualmente os motiva.

Tais ressalvas continuam, em larga medida, a parecer-me válidas, mas ora mostram-se relativizadas pelo modo como a política vem sendo instrumentalizada pela internet nas eleições atuais, num processo em que ao esvaziamento da reflexão mais aprofundada corresponde a disseminação de um festival de ataques baixos e tentativas de desqualificação do opositor, transformado em inimigo a ser aniquilado.

O protagonismo das redes

As redes sociais têm tido um papel fundamental em tal processo. Seu poder mobilizador deriva do fato de, por um lado, inserirem-se como um elemento cotidiano na vida de muitos cidadãos e, por outro, retroalimentarem tanto os marqueteiros de campanha quanto a cobertura midiática. Isso se dá, em primeiro lugar, pela própria natureza das redes sociais, velozes, voláteis e baseadas em uma lógica de agrupamento de pessoas com ideias, gosto ou preferências afins, e com tendência a facilitar a criação de “ondas”, movimentos de manada intensos, porém breves.

A duração de tais movimentos, medidos em horas, no máximo dias, faz com que sirvam como uma luva, por um lado, para o marqueteiro político, ávido por um feedback diário para fazer correções pontuais no desempenho de seu candidato; por outro lado, pela imprensa – notadamente a diária, cuja periodicidade tende a combinar com a do ciclo de renovação dos temas nas redes – e para a mídia, engessada pelas proibições da Justiça Eleitoral e necessitada de pautas que aliem o interesse do leitor/espectador e as eleições.

Egolatria

Pode-se argumentar, como contraponto, que as redes sociais fizeram com que aumentasse o interesse geral por política. Isso pode até ser verdade, porém a política nas redes sociais tende a ser presa de uma economia libidinal tipicamente pós-moderna, sendo submetida às recompensações egoicas do internauta, renovadas em intervalos de poucos segundos, a cada “curtir” no Facebook ou “RT” ou favoritada no Twitter. Trata-se de um processo que, do ponto de vista subjetivo, encerra-se em si mesmo, porém gerando graves consequências por ocupar sub-repticiamente o lugar – e, em determinado grau, dificultar o exercício – da reflexão e do debate aprofundado sobre questões políticas.

Temos, portanto, uma lógica alimentada pelo próprio modo de operação do usuário com a rede social, em que o espaço para a explanação de projetos políticos e para o debate e o embate de propostas é, em grande parte, ocupado em prol de uma espécie de jogo competitivo cujo objetivo varia entre uma mesquinha recompensa egoica e a questionável realização de marketing eleitoral de colocar um tema entre os mais debatidos do dia.

Mercenários virtuais

Esse cenário, por si só preocupante em uma democracia com tantas urgências e com tanta carência de propostas planejadas no médio e longo prazos, agrava-se com a ação de agentes contratados pelos partidos para, no mais das vezes sem identificarem-se como tal, agir nas redes sociais em prol de determinada(s) candidatura(s).

Fora do radar da Justiça Eleitoral, operando diuturnamente e sob a coordenação do marketing das campanhas, esses agentes, frequentemente com uma formação política precária ou quase nula, pouco colaboram para o debate ou para o aprofundamento desta ou daquela questão: sua função é martelar slogans, plantar suspeitas e desferir ataques que atendam aos objetivos traçados pela estratégia de marketing do partido.

Ataque deliberado

Mas o protagonismo das redes sociais e, nelas, a indistinção entre cidadãos engajados e mercenários não seriam suficientes para explicar o baixíssimo nível das eleições presidenciais deste ano – mesmo porque as redes sociais já eram atuantes em eleições anteriores e, embora partidários de um e de outro candidato se digladiassem entre si e um certo nível de baixaria sempre houvesse, jamais praticamente monopolizaram a campanha como ocorre este ano.

Pois o que nós estamos assistindo, não raro enojados, é fruto de estratégia deliberada de marqueteiros, ciente das características pouco aprofundadoras das redes sociais e do estado de “eterno presente” em que tendem a manter o internauta, engajado como que num videogame em que batalha por seu candidato.

Sabem que esse formato competitivo, baseado na recompensa egoica pessoal e na identificação de grupo, sob o comando de suas diretrizes, tem como consequências óbvias o primado dos ataques estereotipados, pespegados através de slogans martelados ad infinitum, em detrimento das nuances, ponderações e do aprofundamento necessários a um debate efetivo de projetos políticos. Assim, serve, ainda, como uma forma de acobertar a ausência de um programa de governo detalhado por parte de algumas forças políticas, desviando a atenção dos eleitores para questões incomparavelmente menos importantes, como quantas curtidas recebeu seu post no Facebook ou qual a tag que terminou o dia em primeiro lugar nos trending topics do Twitter, se a dos apoiadores de Dilma, de Marina ou de Aécio.

Estratégia da desqualificação

Nenhuma dessas três candidaturas mais competitivas está, evidentemente, isenta de um certo grau de agressividade nas redes socais – o que, de certa forma, vem a corroborar o que foi dito sobre a natureza de tal meio virtual. A rigor, seria, porém, injusto dizer que tais manifestações violentas se equivalem ou que são meramente reativas. A estratégia traçada pelos marqueteiros das campanhas acaba por influenciar de forma determinante o grau de agressividade nas redes e, desse modo, o PT assumiu, nestas eleições presidenciais, o papel que tradicionalmente era atribuído ao PSDB de José Serra, como o partido cujos militantes virtuais têm feito um uso mais agressivo da rede e sobre o qual recai o maior número de suspeitas quanto à ação de agentes pagos.

E como Marina Silva é, até o momento, a candidata que efetivamente ameaça a continuação do projeto petista de poder, a campanha contra ela, ininterrupta desde o final do velório de Eduardo Campos, atingiu um grau de agressividade que talvez só a de Fernando Collor contra Lula, em 1989, tenha logrado igualar.

Em mais uma prova de que história só se repete como farsa, o PT reedita, neste momento, contra Marina Silva, a campanha do medo da qual foi alvo em 2002. Desta feita, porém, com a própria presidente Dilma Rousseff encarnando a Regina Duarte da vez, numa tática ofensiva ao passado político do PT, à candidata petista e à liturgia da Presidência.

Enfraquecimento da democracia

Assiste-se, assim, a um verdadeiro festival de baixarias, em que o trato civilizado entre ex-aliados, hoje em oposição, dá lugar a uma catarse em que o ódio serve de alimento às agressões pessoais. Para além de seu significado em termos propriamente partidários, trata-se de um retrocesso lamentável para a ainda jovem democracia brasileira.

Pois, fenômeno global, o aspecto por demais cosmético do marketing político na atualidade, por mim abordado em outro artigo neste Observatório (ver “A guerra do marketing político“), introduz por si uma transformação – da política em objeto de consumo – altamente negativa para o avanço democrático.

A corrente despolitização das eleições, transformadas num jogo de difusão de boatos, meias verdades e tentativas incessantes de desqualificação pessoal do adversário vai além: desqualifica a própria democracia, enfraquecendo-a, num gesto irresponsável e temerário para o futuro politico do país.

Reação institucional

Urge, porém, que os setores democráticos da sociedade brasileira se unam para que medidas sejam tomadas no sentido de impedir que os ataques baixos e o esvaziamento dos debates dominem as futuras eleições no Brasil.

Há de se aprimorar a legislação eleitoral, adaptando-a a tempos cibernéticos, e de se estabelecer uma ação mais efetiva da Justiça Eleitoral: a exigência de que todos os partidos apresentem programas de governo detalhados, com indicativo da fonte de receitas e adequação a normas preestabelecidas, um maior espaço para o debate de política na mídia e nos meios educacionais, além de punições efetivas e rigorosas no sentido de coibir as campanhas difamatórias e o jogo baixo seriam medidas bem-vindas no curto prazo.

Faz-se necessário, o quanto antes, que mídia e sociedade organizada trabalhem no sentido de diminuir o peso do marketing político e das táticas de desqualificação e enfrentamento através do incentivo constante ao diálogo com o poder e ao debate de programas partidários e demandas sociais antes e durante as eleições, no sentido de resgatar, também na política, o “tempo da delicadeza” de que, em uma de suas mais belas canções, nos fala Chico Buarque.

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Mauricio Caleiro é jornalista e doutor em Comunicação pela UFF; seu blog