Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Mordaça 2.0 à imprensa

A alquimia, como se sabe, não existe. Salvo nas lendas infantis ou no Equador, onde funciona ao avesso. Assim, um tradicional jornal diário de Quito em breve se transformará em semanário. O jornal Hoy, que circula há 32 anos, continuará a se chamar assim, porque essa é sua marca. No entanto, seus donos se limitarão a rodar a gráfica apenas para a edição do fim de semana. A ausência durante o restante da semana é obra da engenharia reversa, que faz parte da arte do presidente Rafael Correa, dedicado a sua missão de refundar o país andino, não importa o patrimônio que se imole a caminho.

Em guerra com a imprensa independente desde que tomou posse, em 2007, Correa já experimentou um pouco de tudo. Processou jornalistas, multou jornais e cassou licenças. Com regularidade, volta suas baterias contra os profissionais da mídia que o incomodam, como fez em 23 de agosto, numa estação de rádio estatal, quando chamou o jornalista exilado Emilio Palacio, um de seus maiores desafetos, de “psicopata” e instigou os ouvintes a revidá-lo. “Não se sente com vontade de lhe dar um chute?”, perguntou no programa Enlace Cidadão. No mínimo, foi uma espécie de linchamento com mandado palaciano. Na Alemanha, por volta de 1940, quem atendia a pedidos como esses usava camisa marrom com a suástica no braço esquerdo.

Mais sagaz, Correa prefere lançar golpes institucionais. Afinal, os tribunais equatorianos, lotados de seus partidários, são um engenho de processos redigidos em prol do presidente. Atualmente, transitam pela Justiça uma centena de ações penais contra a mídia privada nacional, segundo estimativas independentes.

Contra o jornal Hoy, Correa recorreu a outro macete, que está em voga pelo continente sul-americano: controle de importação. Restringiu a compra de bobinas importadas de papel-jornal, um golpe certeiro num país onde a televisão e o rádio, quando não pertencem ao Estado, já são tutelados pelo governo. “O papel é o último bastião da mídia independente. Por isso, os mandatários querem cortá-lo”, diz Thor Halvorssen, diretor da ONG Human Rights Foundation, com sede em Nova York.

Se a investida contra a imprensa equatoriana se restringisse a medidas avulsas, já seria grave. No entanto, Correa quer muito mais. Por isso, promoveu a Lei Orgânica de Comunicação, aprovada com facilidade no ano passado pelo Parlamento amigo, um catatau que reúne 109 medidas e artigos, talhados a dedo para domar a crítica.

Na nova legislação, a linguagem é caprichada. Em vez de ameaçar com censura a quem ouse desandar da boa conduta, inverte o jogo. Censor não é o Estado, mas sim aquela mídia que pratica “omissão deliberada e recorrente da disseminação de assuntos do interesse público”. É a alquimia jurídica, que converte a vítima em algoz.

Origem chavista

O modelo equatoriano é um filhote da matriz venezuelana, parida e aperfeiçoada nos 14 anos do regime do comandante Hugo Chávez, com emendas e anexos no governo de Nicolás Maduro. Na quarta-feira, o jornal El Universal demitiu Rayma Suprani, uma cartunista premiada. Sua ofensa: um desenho retratando o precário quadro da saúde pública venezuelana, inspirado na assinatura de Chávez, que a desenhista converteu em uma linha horizontal, como se fosse o aparelho cardíaco de um paciente sem sinais vitais.

Em tempo: após uma longa agonia e sem papel suficiente para imprimir seus cadernos, o centenário diário venezuelano, conhecido pela linha editorial independente, foi vendido em julho para um comprador não revelado. Muitos jornalistas já pediram demissão, outros acabaram demitidos.

Outro grupo independente da mídia impressa venezuelana, a Cadena Capriles, viu-se obrigado a se render a um obscuro grupo espanhol, com dinheiro, mas sem tradição na mídia. Tudo isso apesar de a Constituição bolivariana vetar explicitamente o controle da imprensa nacional pelo capital estrangeiro. Mas tudo bem. Na alquimia bolivariana, a lei é o que o feiticeiro máximo quer que ela seja. E cada vez mais, a notícia também.

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Mac Margolis é colunista do Estado de S.Paulo e colaborador da Bloomberg View