O teórico da comunicação Mauro Wolf lembra que a mídia, descrevendo e precisando a realidade exterior, apresenta ao público uma lista daquilo sobre o que é necessário ter uma opinião e discutir. Ainda segundo o autor italiano, a hipótese da agenda setting (como é conhecida esta tese) toma como postulado um impacto direto – mesmo que não imediato – sobre os destinatários, que se configura segundo dois níveis: a. ‘a ordem do dia’ dos temas, assuntos e problemas presentes na agenda dos mass media; b. a hierarquia de importância e de prioridade segundo a qual esses elementos estão dispostos na ‘ordem do dia’.
Neste quadro, sempre segundo Wolf, a formação da agenda do público vem a ser o resultado de algo muito mais complexo do que a ‘mera’ estruturação de uma ordem do dia de temas e problemas por parte dos mass media. A agenda envolve a constituição de um quadro de referências e as necessidades, crenças e expectativas que influenciam aquilo que o destinatário retira de uma situação comunicativa.
Recentemente, havíamos defendido a hipótese de que a tese da agenda setting poderia ser um instrumento de análise mais refinado se fosse retomada como fazendo parte da ‘luta pelas interpretações’, no jogo da história. A agenda setting seria, em última instância, uma agenda semântica, a luta pelo estabelecimento dos sentidos hegemônicos (ou contra-hegemônicos) na sociedade, com a decorrente estruturação de uma memória e de um campo de significações possíveis ‘a partir do agora’ (futuridade, em linguagem conceitual).
‘Abuso’ e ‘equívoco’
O caso Daniel Dantas pode ser um objeto de análise bastante interessante para essa hipótese de trabalho. Como é um caso que atinge pelo menos três dos grandes partidos brasileiros (DEM, PSDB e PT), governo e oposições, instituições financeiras, Poder Judiciário e imprensa, é bastante crível que os veículos alinhados (a uma das posições políticas) tentem redefinir o campo de alcance das revelações, reduzindo os prejuízos que podem ser causados a aliados e intensificando bastante aqueles que podem ser destrutivos contra seus adversários.
Neste momento, primeira semana após a revelação das descobertas da Polícia Federal, a imprensa, alinhada com a oposição, atua a partir de, pelo menos, quatro estratégias, que já podem ser detectadas.
1) Desqualifica as apurações contra jornalistas, afirmando que o que há não passa de indícios sem provas. Da mesma forma, faz a acusação recair sobre jornalistas que não foram citados como tendo ligações explícitas com ‘a organização criminosa’, como forma de mobilizar inocentes contra as descobertas. Desta forma, tenta criar um antídoto contra possíveis revelações que atinjam a credibilidade dos próprios veículos.
2) Empreende um recorte partidário e temporário. Só interessa à imprensa alinhada o que diz respeito ao partido adversário e às ações circunscritas numa certa temporalidade que excluam as operações de Dantas de um passado já bastante remoto (que remonta a mais de uma década). Com isso, tenta estabelecer uma memória possível de sentidos.
3) ‘Cria acusados’ no Judiciário, como estratégia para dividir corporativamente este poder e arrebanhar aliados. Neste caso, a estratégia é a mesma do item 1, mas em outra instância.
4) Divulga notas desencontradas em relação às operações da Polícia Federal, principalmente no que diz respeito a acentuar as divisões na corporação, frutos de possíveis divergências em relação aos rumos da apuração. Nomeia como ‘abuso’ e ‘equívoco’ (operação de designação poderosa) as ações de setores que podem vir a causar problemas para as estratégias acima.
Guerra está em curso
Em relação à quarta estratégia acima, são importantes algumas linhas a mais. É possível que haja um deslocamento, nas próximas semanas, de enunciados como ‘X vai apurar se houve abuso’, para outros como ‘X diz que possíveis abusos serão apurados’, ou quando se põe este ‘fato’ em discussão – a agenda propriamente estabelecida, em que o sentido se transforma em fato consumado: ‘Y e Z falam sobre melhor maneira para conter os abusos cometidos’ ou mesmo ‘Y e Z discutem situação de delegado em relação a abusos’.
Aquelas quatro linhas de atuação estão se concatenando, principalmente nos jornais de referência do eixo Rio-São Paulo.
Se a agenda semântica vai ser instaurada a partir desta, não é possível afirmar, visto que o sucesso desse empreendimento depende, basicamente, da força de circulação de outras posições de interpretação, bastante facilitadas com a rede, justamente a novidade na disputa pela agenda semântica.
Há até bem pouco tempo, os chamados jornalões, aliados aos grupos de mídia eletrônica, conseguiam estabelecer com mais facilidade os sentidos hegemônicos sobre os fatos político-econômicos e sócio-culturais. Com o advento da web, e o surgimento de sites e blogs jornalísticos independentes, esta guerra é muitas vezes perdida.
Mas a disputa está em curso.
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Professor de Jornalismo e doutor em Lingüística