Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Adultização da infância

Talvez você não se dê conta, mas, com certeza, já viu várias propagandas, dos mais variados produtos, que utilizam crianças nos papéis de adultos. Publicidades bem feitas, às vezes, engraçadas e que acabam mexendo com o emocional. Pois bem, esse é o objetivo. Porém, você já parou para pensar no efeito que isso tem na infância? O que essas imagens acabam impactando no universo, na formação das crianças? Essas práticas acabam contribuindo, de certa forma, para a adultização de meninos e meninas, para o que diversas pesquisas destacam como o encurtamento da infância.

Intrigada com o tema, a professora assistente da Universidade do Estado da Bahia, Cristhiane Ferreguett, resolveu pesquisar mais sobre o assunto. Descobriu que as crianças desenvolveram certo grau de ceticismo com relação à publicidade, boa parte sabe que tudo é imaginário, não real. Mas por outro lado identificou que “o discurso publicitário passou a se camuflar e a se inserir em diversos gêneros do discurso, especialmente nas reportagens das revistas infantis”.

Relações dialógicas em revista infantil:o processo de adultização de meninas foi o título da tese de doutorado da professora, defendida em agosto deste ano, na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Em entrevista à revistapontocom, Cristhiane traz mais dados do estudo e avalia o contexto da adultização nos dias de hoje.

Acompanhe:

A sua tese tem o objetivo de discutir a questão da adultização das crianças, correto?

Cristhiane Ferreguett – Sim. O título da minha tese é Relações dialógicas em revista infantil: o processo de adultização de meninas; um trabalho de doutorado em letras defendido, em agosto deste ano, na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Trata-se de um estudo sobre o discurso midiático dirigido às crianças, em especial às meninas, na faixa etária dos 6 aos 11 anos de idade. Tomei conhecimento de pesquisas que constataram que a criança desenvolveu certo grau de ceticismo em relação à publicidade. A criança sabe que o intuito da propaganda é vender e que para isso ela apresenta um discurso persuasivo que, na maioria das vezes, não corresponde à realidade. Para vencer esta resistência, o discurso publicitário passou a se camuflar e a se inserir em diversos gêneros do discurso, especialmente nas reportagens das revistas infantis. Inserido em reportagens, o discurso publicitário passa a ser mais aceito pela criança. Portanto, na minha tese, analisei como o discurso publicitário se engendra na tessitura discursiva de reportagens de uma revista infantil da Editora Abril, a Revista Recreio Girls, e que efeitos de sentidos produz no que se refere à adultização precoce da menina.

E o que você observou?

C.F. – Após analisar detalhadamente três reportagens de diferentes exemplares, constatei que as reportagens apresentam diversas características do discurso publicitário, como apresentação de marcas e preços de produtos. A adultização precoce da menina é construída discursivamente e pode ser observada pelos modelos adultos apresentados como referência de como a menina deve se vestir, maquiar, pentear e do modo como ela deve agir e ser, a fim de promover e incentivar o consumo de produtos normalmente desnecessários para uma criança.

E a adultização da infância se constitui num problema, certo?

C.F. – Sim. A inserção precoce da criança no mundo do adulto encurta sua infância. Existem estudos que comprovam um encurtamento da infância no plano fisiológico, as meninas estão entrando mais cedo no período da puberdade. Na contramão da queda da fertilidade entre as mulheres adultas, aumenta o número de gravidez na adolescência.

O fato é que essa adultização, muitas vezes, é compreendida como ‘algo normal’.

C.F. – Adultizar uma criança significa inseri-la precocemente no mundo adulto. Isso pode acontecer de diversas formas. Por exemplo, no inicio do processo de industrialização do nosso país a criança era inserida no trabalho das fábricas e era exigido delas a produtividade e a responsabilidade de um adulto. Hoje o trabalho infantil não é mais aceito. A adultização está acontecendo de outras formas, através do incentivo de comportamento e aquisição de produtos desnecessários a criança. Já é possível encontrar e comprar sutiãs com bojo para meninas a partir de 2 anos de idade. Meninas pequenas usam maquiagem e sandálias de salto alto, comprometendo a saúde da sua pele e da sua coluna. Para a indústria e o comércio isso é muito bom, no sentido em que uma criança que vive sua infância com comportamento de criança consome muito menos do que uma criança adultizada. E, sim, existe uma banalização deste comportamento no sentido que a sociedade passa a aceitar isso como normal e adequado.

Sempre que uma voz ecoa contra abusos da adultização vem à tona o discurso do direito de informação/comunicação, da liberdade da imprensa e a questão da censura.

C.F. – Compreendo que é dever do Estado e da sociedade civil organizada proteger a criança e sua infância. A liberdade da imprensa não deve comprometer o bem estar e a formação das nossas crianças, nossos futuros cidadãos. Recentemente uma resolução (Resolução n.º 163/2014 – aprovada por unanimidade pela plenária realizada no dia 13/03/2014) do Conanda proibiu “a prática do direcionamento de publicidade e comunicação mercadológica à criança com a intenção de persuadi-la para o consumo de qualquer produto ou serviço”. Essa resolução precisa ser respeitada, precisamos da adesão dos pais, da escola e da sociedade como um todo para isso é preciso debater o assunto em diversas instâncias.

Como as crianças interpretam/analisam a adultização?

C.F. – A mídia apresenta a criança adultizada com uma conotação positiva, de uma criança que tem/faz sucesso e é feliz graças a um comportamento pautado no consumismo. Se a mídia só mostra a criança adultizada como o modelo ideal, esse modelo passa a ser um modelo idealizado e copiado pelas crianças. Daí a necessidade de um debate com os adultos que cuidam da educação das crianças. As crianças precisam ter um olhar crítico sobre o modelo que a mídia lhe apresenta.

Você acredita que é possível reverter este quadro de banalização da adultização da infância?

C.F. – Sou professora de cursos de licenciatura na Universidade do Estado da Bahia e sempre percebi a ausência da leitura e discussão de textos midiáticos por parte do professor do Ensino Fundamental e Médio. Gostaria que meu estudo servisse de apoio para o trabalho do professor do Ensino Fundamental junto às crianças no processo de discussão de textos midiáticos – em especial o texto publicitário – e para o embasamento de uma leitura crítica de revistas que circulam em nosso meio social. O diálogo e o debate permanente dentro dos diversos espaços sociais da criança é o caminho mais adequado para que ela tenha um olhar crítico sobre os diversos discursos que circulam no meio midiático.

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Marcus Tadeu, da revistapontocom