Tuesday, 26 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Questões para ‘abrir a cabeça’

Em matéria veiculada na Folha Online de 12/7/04 (http://www1.folha.uol.com.br/folha/informatica/
ult124u16436.shtml
), o Sr. Bill Gates veio a público mais uma vez com um discurso recheado de falácias, na velha tentativa de repetir mentiras a respeito do software livre (programas de código aberto que podem ser copiados e modificados livremente), a fim de torná-las verdades. Foram dois os ‘argumentos’ por ele declarados: a) o software livre não gera empregos, e, portanto, não tem relação com o desenvolvimento econômico; b) não há garantia de qualidade em softwares livres, pois estes são feitos ‘à noite’.

Analisemos cada um deles.

É relativamente muito fácil construir um discurso que ratifique o desenvolvimento assentado em geração de empregos. Por quê? Porque numa economia capitalista o emprego é a condição fundamental de inserção social. Numa sociedade em que todas as coisas, materiais e imateriais, viraram mercadorias, só é possível adquiri-las por meio da troca, da troca monetária. E só se pode conseguir dinheiro se se vender alguma coisa. Como a maioria esmagadora das pessoas não são donas de empresas, resta-lhes vender a única coisa que possuem: a capacidade de trabalhar. O emprego é, fundamentalmente, isso: a posição social ocupada por aqueles que só têm uma única propriedade, ou seja, a sua capacidade de realizar um trabalho (seja ele qual for). Se a necessidade apertar, ou se o desemprego perdurar, não há duvida de que podemos realizar praticamente qualquer atividade. Então, isso significa que defender a geração de empregos é algo positivo e que deve ser considerado progressista? Será Bill Gates um novo paladino do progresso social? Observemos o emprego um pouco mais de perto.

Gerentes loucos?

Ao entregar sua capacidade de trabalho a outra pessoa, o trabalhador abdica de algumas coisas. Quais? Em primeiro lugar, dos frutos do seu trabalho, tudo aquilo que ele criou no seu trabalho (tangível ou intangível) não lhe pertence. Mas não é apenas isso. A própria atividade realizada pelo trabalhador não tem sua finalidade, seus objetivos, seu sentido definidos por aquele que ‘põe a mão na massa’. Quem define os parâmetros do trabalho a ser realizado é aquele que comprou a capacidade de trabalhar do trabalhador. Que bom destino é o daqueles que precisam viver do emprego! Todas as coisas nas quais eles investiram seu esforço físico e mental, suas emoções e suas personalidades, não lhes pertencem. Todas as atividades que eles devem realizar lhes são estranhas, pois têm o seu sentido, a sua lógica residente em outras pessoas que não eles.

Que grande progresso é esse! As atividades nas quais deveríamos por em prática as nossas capacidades essencialmente humanas – nossa inteligência, nossa capacidade de abstrair, nossa vontade consciente – são atividades nas quais devemos nos comportar como meros autômatos, meras engrenagens de algo que é maior do que nós mesmos. Será mesmo esse o destino que queremos para nós? Será mesmo que o emprego – o trabalho assalariado – é a única forma possível que temos de produzir a riqueza social? Ou será que todos aqueles que querem nos fazer crer que essa é uma condição eterna e universal na verdade estão ‘por cima da carne seca’, ou seja, porque podem usufruir de todas as potências e benefícios construídos por aqueles que trabalham?

Observemos o segundo ‘argumento’. De acordo com ele, as coisas só têm qualidade quando são produzidas sob supervisão, dentro das empresas. Há alguns anos, tornou-se lugar-comum o termo ‘qualidade total’. Grande parte das empresas demitiu um número avassalador de trabalhadores afirmando que precisavam se ‘reestruturar’ para garantir maior qualidade. Numa sociedade em que tudo é mercadoria é preciso sempre vender, e vender cada vez mais, para garantir a sustentabilidade e o crescimento dos lucros. Que razão teriam as empresas para produzir geladeiras e carros que durem 30 anos, por exemplo? Se nem os loucos rasgam dinheiro, será mesmo que os grandes gerentes adotariam políticas de qualidade que eliminassem seus mercados no presente e no futuro?

Homens e coisas

Temos aqui outra característica da ‘sociedade generalizada de mercadorias’: a utilidade das coisas está sempre num movimento decrescente, para garantir a venda permanente de outros produtos. A própria Microsoft é um exemplo, por excelência, desse mecanismo. Não é por acaso que os seus sistemas operacionais sempre apresentam, a cada nova versão, mais e mais problemas. É preciso garantir, acima de tudo e de todos, que as pessoas sempre precisem de um produto ‘mais eficiente’.

E mais: a Intel precisa também vender processadores cada vez mais poderosos, a Kingston também precisa vender cada vez mais módulos de memória RAM. E, é claro, a Microsoft vai se encarregar de produzir sistemas operacionais que exijam mais memória e mais poder de processamento, mesmo que eles sejam demais para as necessidades e para o bolso dos consumidores.

Essa é a dura realidade na produção generalizada de mercadorias: seus objetivos são a garantia da lucratividade das empresas, e dos seus poucos donos, e não o atendimento das necessidades das pessoas. É o ‘mundo do homem’ a serviço do ‘mundo das coisas’. Nada, nada mais esquizofrênico do que isso! Será mesmo que devemos lutar com ‘unhas e dentes’ por um desenvolvimento econômico cuja finalidade não seja a existência livre e plena do homem? Será que as milhares de pessoas que lutam não só para produzir software livre, mas para revolucionar de cima abaixo as atuais ‘condições sociais’ acham mesmo que é esse o caminho a ser seguido?

Dias contados

Quando constatamos o fato de que milhares de pessoas, desempenhando funções diferentes, unem-se, através do ciberespaço, com o objetivo de produzir não só programas de computador, mas conhecimento na forma, efetiva, de propriedade social, então, não se trata mais de troca mercantil e nem mesmo de mercadoria. Não se trata mais da separação entre os produtores diretos e os produtos e os meios do seu trabalho, não se trata mais do trabalhador existente apenas como mera subjetividade coisificada a serviço de outrem. As novas relações entre os diferentes trabalhadores (o programador, os diferentes programadores, os tradutores, os desenvolvedores, no caso do software livre), relações de cooperação ampliada e potencializada pelos novos meios de comunicação virtual, garantem novas relações entre esses diferentes trabalhadores e seus produtos e meios de trabalho. Esses produtos aparecem desde já, desde a sua gênese, como produtos sociais de uma coletividade. E o seu trabalho também aparece como atividade dotada de sentido, atividade livre, auto-atividade.

Atividade dotada de sentido e produto do trabalho não mais afastado de quem o produziu são sinais muito claros de mudanças radicais em relação à sociedade generalizada de mercadorias. Isso significa uma espécie de desentranhamento progressivo dos trabalhadores a partir da construção de novas relações sociais. Esse é, sem dúvida, um arranjo produtivo muito diferente da produção em bases capitalistas, na qual as mercadorias assumem o caráter de seres sociais e as pessoas assumem o caráter de coisas materiais. Eis, portanto, o grande desafio posto para movimentos como Software Livre e Wikipedia: será possível copiar esse modelo para as outras esferas da vida social?

Se a resposta, na prática muito mais do que na teoria, for ‘sim’, então, a sociabilidade do capital está com os seus dias contados…

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Economista, mestrando em Sociologia pela Unicamp