ELEIÇÕES 2006
Fátima Pacheco Jordão
A cadeira vazia e uma pilha de notas que podem decidir um segundo tempo
“Há três semanas atrás, uma vitória de Lula no primeiro turno, ainda que com pequena margem de votos, seria a consagração de quatro anos de um governo percebido como bem-sucedido, com ações eficazes para os segmentos de baixa renda, desde controle da inflação,passando por aumento de rendimento para os trabalhadores de menor renda, até políticas compensatórias bem administradas.
Isso sem contar a simpatia ostensiva de parte das elites ligadas ao setor financeiro.
Os deslizes ou delinqüências associados ao governo Lula ou a membros próximos de sua equipe, perpetrados já faz muitos meses, desde o episódio do mensalão, poderiam ficar ofuscados pelas luzes da eventual vitória e por esperanças de novos tempos. Com o suporte de velhas novas alianças.
Ocorre que hoje, mesmo que se dê uma vitória em primeiro turno, ela não acalmará as ondas das águas agitadas da política, enfurecidas pelo dossiê camicase contra os candidatos tucanos e pelas trapalhadas que se seguiram. Os eleitores assistiram aparvalhados a um jogo de esconde-esconde de evidências e um ritual de degola-relâmpago de assessores, funcionários de altos cargos e companheiros de campanha.
Uma seqüência de erros inesperados, desconcertantes e de impacto significativo no eleitorado, de tal forma que prognósticos de pesquisas de ontem poderão ser revirados até o minuto final, na beira do teclado da urna eletrônica.
Já está ocorrendo uma reversão de expectativas em parcela do eleitorado de Lula, que a pesquisa Ibope detectou. Finalizada ontem, a margem entre os votos de Lula e a soma de outros candidatos caiu a ponto de apontar um empate técnico – 51% do petista contra 49% da soma dos adversários, considerados os votos válidos. Efeito em grande medida da ausência de Lula no debate e da divulgação das pilhas de notas apanhadas com petistas aloprados, segundo adjetivação do próprio presidente-candidato.
Nesta fila de desacertos, o mais relevante contra Lula foi a sua ausência no debate. Justamente o componente de comunicação mais valorizado pelo eleitor e cujos efeitos se desdobram pelos dias seguintes. Até a urna.
Na visão dos eleitores menos firmes de Lula, aqueles que podem mudar o voto (cerca de 20% ainda), a ausência do candidato no debate pode tê-lo implicado fortemente, de maneira antes não configurada, com o dossiê Vedoin. Um dia depois, a exibição das fotos de pilhas de dinheiro certamente potencializou a percepção de conivência de Lula.
Pela seqüência dos indicadores de pesquisa, pela nova dinâmica desta campanha, cresceu, de fato, a probabilidade de segundo turno. Ou está muito mais perto do que parecia. O eleitor ganhou por esperar e acompanhar atentamente, lance a lance, o desenrolar do jogo. Hoje o campo está mais bem iluminado. Pronto para um segundo tempo que não será uma nova eleição, e sim a continuação das atuais tendências e dilemas.”
Dora Kramer
De maré mansa a maremoto
“Afora a inquietação que assolava um bom número de almas sobre as razões do sucesso do presidente Luiz Inácio da Silva nas pesquisas de intenção de voto a despeito de tantos escândalos envolvendo correligionários de partido e subordinados no governo, a campanha eleitoral seguia morna até duas semanas atrás.
O clima contrariava as expectativas iniciais de que o acirramento dos ânimos resultante de sucessivas crises políticas faria da campanha uma carnificina, com uma disputa aguerrida e polarizada de ponta a ponta entre PT e PSDB.
Deu-se o oposto: Lula assumiu a dianteira desde o início, a oposição desanimou-se ao constatar que ética não constava entre os artigos de primeira necessidade na agenda da maioria – pelo menos da maioria traduzida nas pesquisas – e formou-se quase um consenso de que hoje tudo seria decidido com facilidade em favor da reeleição do presidente da República.
Pois chegamos ao dia da eleição em clima de conturbação político-policial, o que, para quem gosta, pode ser sinônimo de emoção. Suspense haverá até o início da apuração dos votos, pois a perspectiva de haver segundo turno aumentou depois dos dissabores que atingiram Lula na reta final, alteraram o humor e sacudiram o conformismo geral.
Se as adversidades serão suficientes para levar a eleição ao segundo turno, digamos o óbvio: impossível saber.
Se uma hipotética nova etapa será, como gostam de dizer os especialistas, uma outra eleição reiniciada do zero, escoremo-nos no mais provável para especular: nada indica, pois o patrimônio de Lula é grande e a identificação do eleitorado com o adversário não autoriza apostas certeiras na virada.
Fato é, porém, que a ainda mais plausível vitória de Lula, seja em primeiro ou segundo turnos, dar-se-á sob o signo do travo amargo do confronto.
A continuidade da crise política está irremediavelmente contratada, resta saber em que proporções acontecerá. Embora seja improvável, a oposição pode até dar uma trégua a Lula, mas jamais aceitará aderir a pactos de governabilidade, pois os sabe desprovidos de uma real disposição ao desarmamento.
Por mais que o presidente e seus assessores mais próximos, como Tarso Genro e Marco Aurélio Garcia, possam até apostar de verdade numa agenda mínima de entendimento, o PT não abre mão do exercício da política pela via do conflito permanente, como já demonstrou em diversas ocasiões durante mesmo os quatro anos em que ocupou a Presidência da República.
Se já não tivesse dado mostras suficientes de como a natureza original leva os petistas ao ataque quando se sentem fortalecidos, a tentativa de ‘jogar uma pá de cal’ na candidatura de Geraldo Alckmin e ferir gravemente aquele que deverá ser o principal líder de oposição, por meio de um dossiê contra José Serra, foi a prova dos nove.
Mas a proposta de paz não esbarra apenas no PT. A oposição não quer, e por dois motivos básicos: perdendo agora, pretende se credenciar à Presidência em 2010 e, além disso, PSDB e PFL não vêem vantagem alguma em amenizar as ações em relação a um governo sob forte questionamento jurídico e moral.
Equivaleria, argumentam, a um salvo-conduto na melhor das hipóteses e, na pior, a cumplicidade com um passivo que resultará em sentenças judiciais mais cedo ou mais tarde.
Mas, e se o improvável ocorrer e Alckmin vencer?
Bem, aí o PT, a começar pela imposição de suspeição sobre o resultado eleitoral, demandará todos os seus esforços, mobilizará o aparelho incrustado na máquina do Estado, para, sob a forte liderança popular de Lula, transtornar o ato de governar.
Veredas
Ao longo da campanha, os candidatos acabaram tomando caminhos diferentes dos pretendidos, desvios de adaptação das expectativas geradas à realidade dos fatos.
O presidente Lula, por exemplo, não sustentou o personagem ‘paz e amor’ que havia prometido encarnar. A exasperação foi sua marca registrada.
Geraldo Alckmin não conseguiu promover o ‘embate de personalidades’ entre ele e Lula, com o qual esperava incorporar aos olhos do eleitor o baluarte da ética e dos bons costumes. Tampouco mostrou contra o adversário um átimo da ferocidade exibida na disputa pela legenda do PSDB para concorrer. A monotonia balizou seu desempenho.
Heloísa Helena não personificou a alternativa à dicotomia PT-PSDB nem eletrizou a temporada eleitoral como pareceu no início. Avessa ao papel de musa da estação, abafou o melhor de sua personalidade – a delicadeza no trato pessoal. A repetição vestiu suas idéias em figurino de chavões. Na conduta, a agressividade instintiva se sobrepôs à docilidade contida.
Cristovam Buarque acabou se favorecendo da ausência de expectativas em torno de sua performance e só obteve ganhos: dissipou a imagem de candidato de uma ‘nota só’ e impôs respeito à pauta positiva da educação, inicialmente recebida com enfado. Com sua desenvoltura de raciocínio não produziu votos, mas forneceu alento.”
João Ubaldo Ribeiro
É, vamos lá
“Espero, nesta primavera falsificada em que tem feito tanto frio, que hoje seja, em todo este país imenso, um belo domingo de sol tropical. Belos domingos de sol não dependem da interferência do Estado, nem ainda existem taxas ou impostos que nos cobrem por eles. E desta forma, encantadora leitora, gentil leitor, podemos tentar deixar de lado os problemas que todo mundo carrega e procurar nosso programa favorito para um domingo assim. Claro, ia me passando, hoje tem eleição. Não deixem que também lhes passe, uns porque quiçá prefiram dormir, outros porque não notaram que havia uma campanha eleitoral em andamento, outros porque ficam indignados por serem obrigados a votar e assim por diante.
Hesito em falar hoje nessas coisas eleitorais, porque me lembro, na velha Faculdade de Direito da Bahia, do mestre Adalício Nogueira, luminar do Direito Romano e homem de severidade universalmente temida, fulminar-nos do alto da cátedra e advertir a todos nós, calouros e futuros causídicos (eu não, pois, para o bem da ciência jurídica brasileira, não fui lá buscar o diploma): ‘Atenção para um princípio basilar! Nemini licet ignorare legem! Não há desculpa!’ Pois é, desde os romanos ninguém pode alegar ignorância da lei para se livrar de suas malhas implacáveis, embora, no Brasil, se alegue praticamente tudo, inclusive a influência de uma nota de cem na interpretação dada pelo guarda a um dispositivo do Código de Trânsito.
Como, ai de mim, não conheço todas as leis, só pode acometer-me insegurança, em ocasião na qual tão facilmente se ferem suscetibilidades. Não quero infringir dispositivo de lei, medida provisória, regulamento, portaria, instrução, bilhetinho com timbre, recado do doutor, nada, nada dos muitos papelotes com que nos tiranizam desde que nascemos, pois não só disputo minhas parcas notas de cem com considerável trabalho como porque também não disponho de outras alegações igualmente acatadas, tais como ‘não vi’, ‘não sei’, ‘não é comigo’, ‘foi a herança maldita’ e assim por diante. Não há ao menos quem mande quebrar rapidinho o sigilo bancário do meu denunciante, para ajudar a dissuadi-lo de me entregar. Nem mesmo tenho um subescrevedor de crônicas, para botar a culpa nele, demiti-lo e continuar, à sorrelfa (dicionário? sinceramente, essa eu não esperava, mas vão fazer exercício de qualquer forma, o domingo está ótimo para essas coisas), usando os serviços dele. E, assim, em suplicante paz com a justiça eleitoral, nada falo sobre candidatos e assuntos que temo sejam considerados polêmicos.
Pelo contrário, desempenho minha parte no processo democrático e eleitoral, como manda o senso cívico de um cidadão que se deseja prestante. Concito a linda leitora e o guapo leitor a votar. Sim, não vai dar para conferir os votos depois, se houver problema, mas não vamos pensar besteira, nossas urnas são as melhores urnas americanas do mundo, que nem eles mesmos usam muito por lá. E não se queixem por serem obrigados a votar. Vamos reconhecer nossas falhas. Se o voto não fosse obrigatório, ter-se-ia que organizar, por exemplo, um rodízio de praias pelo menos no Rio e em Salvador, em função da multiplicação exponencial da demanda. Em outras cidades sem praia, acredito que as opções de lazer seriam também insuficientes, correndo nós o risco de virmos a ter toda uma nova e vastíssima geração de brasileirinhos nascidos nove meses a partir de hoje, eis que quem não tem cão caça com gato e muitos preferem logo o gato.
Sim, e daí? – diria o inocente jovem que por acaso me lê. Ora, meu rapaz, como se legitimariam nossos representantes, sem votos? Se o voto não fosse obrigatório, não sei se seria absurdo imaginar um deputado eleito com uns 500 votinhos. Não poderia proclamar falar em nome de milhões ou centenas de milhares de brasileiros que nele depositaram confiança. Claro, continuaria não representando ninguém exceto a meia dúzia de três ou quatro que lhe interessa mais de perto, como faz a maioria até hoje, mas não poderia falar bonito, para mais alto erguer a glória de nossa democracia. Como não votar e assim não levar ao poder aqueles que, através da História desta república, tanto têm feito por nós, os governados, a ponto de nos legarem o País que aí está, para qualquer um ver? Portanto, o Estado, que foi criado para nos servir e não cessa um só instante de zelar por nós, aqui na educação, ali na saúde, acolá na segurança, não ia deixar que cometêssemos tamanha irresponsabilidade e aí somos obrigados a votar, é para o nosso próprio bem.
Sim, sim, às urnas, cidadãos! Não necessariamente por mudanças, porque repetidamente nos asseveram que as coisas estão boas como estão e melhorando cada vez mais. Além do que o lema da república parece ser um sensato e conservador ‘não muda nada aí’. Às vezes se diria que estão falando até de outro país, mas isso é por causa de nossa alienação – não damos valor ao que é nosso e não temos boa vontade para ver como aqui somos todos felizes. E felizes continuaremos, pagando nossos impostos e nossas multas, estas tão importantes que têm até metas de arrecadação e são itens fundamentais de vários orçamentos públicos – é multando que se constrói.
E vamos votar logo cedo, porque com isso nos desincumbimos logo do dever e ficamos livres para curtir o resto do domingo. Domingo diferente, sim. Até ser preso ninguém pode, com o que desfrutamos do mesmo privilégio de quem devia ser, mas não é preso em dia nenhum. E não sei se ainda é proibido beber em dia de eleição, mas, pelo que tenho testemunhado, quem é chegado a um goró pode ir em frente. As autoridades são compreensivas, fazem vista grossa e até gostam, elas sabem que o pessoal bebe para esquecer.”
CHARGE & POLÍTICA
Ubiratan Brasil
Traços do golpe de 64
“O ex-presidente João Belchior Marques Goulart (1918-1976), conhecido popularmente como Jango, não era uma figura fácil de caricaturar: não possuía características físicas marcantes, que pudessem ser distorcidas pelos artistas na feitura de um retrato de fácil identificação pelo público. No máximo, uma calvície incipiente, que ele tentava evitar usando produtos específicos, o que era destacado pelos desenhistas. Outros políticos daquela época, o início dos anos 1960, davam menos trabalho aos caricaturistas, como Tancredo Neves, Jânio Quadros e Carlos Lacerda, todos com expressões muito marcantes.
Mesmo assim, Jango foi um dos presidentes brasileiros mais retratados da história justamente por comandar o País em uma de suas fases mais atribuladas – desde que assumiu o cargo, a 7 de setembro de 1961, substituindo Quadros que renunciara, até 1º de abril de 1964, quando foi deposto pelos militares, ele enfrentou um conturbado contexto político que culminou justamente com o golpe. Durante esses três anos incompletos, Jango, tanto por ações realizadas ou cogitadas como presidente da República quanto por ter despertado temores, muitas vezes imaginários, de que pretendia trilhar projetos políticos radicais, despertou a ira criativa dos caricaturistas dos principais jornais.
Uma quantidade tamanha que despertou a atenção do historiador Rodrigo Patto Sá Motta que, em 2002, iniciou uma detalhada pesquisa. Logo, ele percebeu que as críticas embutidas nas caricaturas ajudaram a enfraquecer o governo, divulgando imagens que alimentaram o medo e a insegurança, caldo de cultura em que o golpe militar foi gerado. O resultado é o livro Jango e o Golpe de 1964 na Caricatura, que a Jorge Zahar Editor envia até o fim da semana para as livrarias.
O primeiro detalhe percebido por Motta foi o contexto histórico que favorecia aquela produção caricatural – nos primeiros anos de 1960, uma conjunção de elementos, nem sempre comum na história brasileira, apontava para uma polarização aguda entre esquerda e direita, gerando a sensação de que haveria uma ruptura grave (como um golpe ou uma guerra civil) e, ao mesmo tempo, uma relativa liberdade de expressão. ‘Por conta disso, a produção daquele período foi brilhante’, disse Motta ao Estado, por telefone, dos Estados Unidos, onde faz pós-doutorado na Universidade de Maryland. ‘Os caricaturistas estavam estimulados pelo quadro político e não sofriam ainda com mecanismos autoritários.’
Em seguida, depois de selecionar os desenhos mais expressivos como crítica política, aqueles que serviam como peças de intervenção no debate público, Motta separou os caricaturistas a partir de suas tendências. Assim, do ponto de vista político, os trabalhos de Hilde, Adail e Biganti aproximavam-se do ideário liberal, de feição marcadamente anti-esquerdista e anticomunista. ‘No caso de Hilde, essa postura vinha acompanhada do compromisso com o projeto político de Carlos Lacerda, cuja candidatura presidencial ela defendeu com entusiasmo.’
Já caricaturistas como Lan e Augusto Bandeira apresentavam postura ideológica menos nítida, uma vez que criticavam tanto a direita quanto a esquerda. ‘É interessante observar que essas diferenças ideológicas eram coerentes com as posturas assumidas pelos jornais em que os desenhistas publicavam’, observa Motta, lembrando que o primeiro grupo se concentrava em torno de jornais afinados com o ideário liberal, como O Estado de S.Paulo (Hilde Weber e Biganti), Tribuna de Imprensa (os mesmos Hilde e Biganti), enquanto esse pertenceu a Lacerda, e o sensacionalista Maquis (Adail). Lan e Augusto Bandeira eram desenhistas, respectivamente, do Jornal do Brasil e do Correio da Manhã, jornais que chegaram a apoiar alguns projetos reformistas.
Antes de transformar em livro, o material pesquisado inspirou uma tese em que Motta defendia a idéia de que, em épocas de grande insegurança e temor, ‘as formas de linguagem capazes de mobilizar a comicidade e o humor tornam-se particularmente atraentes, pois o riso ajuda a lidar com o medo’. Ele está certo de que as zombarias dirigidas a João Goulart não provocaram uma resposta agressiva da parte do presidente, tampouco foram responsáveis por sua queda. Mas ajudaram a construir um retrato desfavorável de Jango, realçando e atribuindo-lhe qualidades negativas.
Além da falta de cabelos, Jango era retratado com os olhos fechados ou voltados para o chão, que ressaltavam um certo retraimento e timidez, características do ex-presidente. Legítimo herdeiro do populismo de Getúlio Vargas, ele era, na ótica conservadora, um demagogo, autoritário e protetor dos comunistas. Para a esquerda, ao contrário, Jango era considerado um político sensível às causas populares. Desse confronto, que o próprio presidente não soube contornar, resultou o golpe militar.
Seu governo, aliás, começou sob o signo da crise, com a instituição do parlamentarismo, manobra encontrada pelos conservadores para limitar seu poder. O esforço de Jango em retomar o regime presidencialista acentuou, para os caricaturistas, sua imagem de líder esperto, capaz de montar estratégias maliciosas para alcançar seus objetivos. ‘Havia muita argúcia política no traço desses desenhistas’, comenta Motta, lembrando que ambigüidade política de Jango era muito explorada.
À medida que o tempo passava, porém, essa ambigüidade passou a ser encarada como pura encenação para esconder suas reais intenções continuístas. Nem a crise econômica e a inflação galopante batiam o temor maior dos conservadores, que era o provável desejo de Jango se tornar ditador. ‘O receio de que o presidente estava pendendo para o comunismo foi fundamental para sua derrubada, como mostram algumas caricaturas, especialmente as de Hilde, ao mesmo tempo cruel e genial’, diz Motta, para quem os desenhos ajudaram a criar uma imagem pública do presidente. E, de alguma forma, auxiliaram a derrubá-lo.”
Jotabê Medeiros
Liberdade é o maior bem de um artista
“A eficiência histórica que uma caricatura ou uma charge possam alcançar tem relação direta com o senso de independência de seu autor. O desenhista que apenas se curva aos clamores e rumores do seu tempo não adquire relevância. Os que se chocam contra sua época e suas unanimidades geralmente vivem para contar outras histórias. Essa força é possível de ser observada em toda a linha do tempo da ação dos caricaturistas no Brasil, do pioneiro Araújo Porto-Alegre (1806-1879) a iconoclastas como Chico e Paulo Caruso, Angeli, Glauco, Loredano.
No livro Piracicaba, 30 Anos de Humor (Imprensa Oficial), que ilustra boa parte da evolução dos mestres de nossa época, há um cartum que demonstra bem a tese: Chico Caruso, de São Paulo, em plena ditadura militar, levou o primeiro prêmio com um cartum no qual dois agentes da repressão prendem um palhaço no momento de seu show, no picadeiro, deixando a platéia circunspecta, atônita.
Segundo escreveu Luis Fernando Verissimo, o Salão de Piracicaba, que foi lançado em pleno regime militar, sempre juntou gente como Millôr, Jaguar, Ziraldo, Henfil, Zélio. ‘Barricada? Resistência? Válvula de escape? Travessura heróica? O fato é que desde os primeiros salões lá estavam eles, em Piracicaba’, disse. ‘Todos levados pelo instinto, e pela necessidade, da outra coisa. A ditadura acabou, o salão cresceu e a outra coisa hoje é outra coisa.’
De fato, aquela geração era tão talentosa que sobreviveu até a morte do inimigo, eternizando seu trabalho tanto na doença do regime de exceção quanto na saúde democrática. Não é por acaso que um dos mais maltratados modelos dos caricaturistas no governo militar, o economista e deputado Delfim Netto, tenha também se tornado um voraz colecionador das próprias caricaturas, que ilustram seu escritório no Pacaembu.
‘A caricatura, ao contrário do que parece, é a arte de revelar não só a cara, mas o caráter das pessoas; não o que está evidente, mas o detalhe que, de tanto ver, não se percebia’, disse o escritor e jornalista Zuenir Ventura. ‘Quando uma charge é particularmente inspirada, tem um peso extraordinário, fala mais do que mil palavras’, diz o livreiro e colecionador Pedro Corrêa do Lago, que lançou, em 2001, primoroso catálogo com parte de sua coleção de desenhos, Caricaturistas Brasileiros (Sextante Arte).
O alcance artístico de uma caricatura ou uma charge só é definido com um distanciamento histórico, mas é fácil perceber quando um autor enxerga muito além do seu tempo. O artista José Carlos de Brito e Cunha, o J. Carlos (1884-1950), por exemplo: a excelência de sua arte sempre foi tão evidente que José Lins do Rego, certa vez, escreveu que seu desenho estava para a caricatura brasileira assim como Villa-Lobos para a música e Machado de Assis para a literatura.
Do topete de Itamar Franco à barba cerrada de Lula, dos dentes de Fernando Henrique à cara de raposa de Armínio Fraga: de tudo isso, sobra a arte, muito maior do que duas eleições ou pacotes econômicos.”
Elias Thomé Saliba
Lampejo de minutos que valem por anos de história
“Mesmo sem palavras – tiras, charges, caricaturas e cartuns são narrativas da história. Recebendo seu batismo com a imprensa moderna, humoristas, caricaturistas, cartunistas, chargistas aplicaram sua vocação em produzir milhares de estampas efêmeras, criando um espaço cheio de garatujas toscas, traços e desenhos alegres que divertiam – e ainda divertem – os leitores.
Datadas e nascidas para serem lidas no contexto do jornal ou da revista, é certo que perdem muito quando isoladas do seu tempo. Mas como a piada gráfica maneja aquela espécie de código não escrito das sociedades, vai muito além da notícia ou manchete diária ou semanal. É um lampejo de minutos que valem por décadas de história. É talvez o riso mais simples de todos, pois nasce daquela súbita dimensão de materialidade da piada prática: puxar a cadeira quando alguém vai sentar-se; ou escorregar numa casca de banana – a vítima passa subitamente, de pessoa de grande importância a um corpo inútil sujeito às leis da física. Parte da força do desenho gráfico vem desta antiguidade da gag primitiva que se inclui naquilo que Gombrich chamou de ‘arsenal do cartunista’: o contraste agudo entre o claro e o escuro, o belo e o feio, o grande e o pequeno. É difícil encontrar um ser humano que não consiga entender o mundo através destas simples metáforas emocionais.
Não é preciso nomear a corrupção e a imoralidade – na piada gráfica, elas adquirem uma materialidade forte através da metáfora da lama ou do visgo. O aumento exagerado das escalas serve para mostrar a força descomunal do poder político, o abuso deste e… o tombo – inevitável, risível, sempre proporcional à sua arrogância. Já as caras e perfis faciais de políticos ou grandes personagens, singularizam-se nos rabiscos, dispensam palavras e personificam-se: Napoleão tem o corpo possuído por um cavalo fogoso, com furor eqüino de governar e Hitler transmuta-se num abutre. Na história brasileira, Floriano Peixoto vira uma espada falante, Costa e Silva ganha traços de uma foca roliça. Já governantes personificados em sapos foram inúmeros, desde o primeiro deles, desenhado por Gillray, em 1797, no qual vemos o rei inglês George III, submergindo no lodaçal da traição. Se em razão do tom mais permanente da palavra, a piada verbal é sempre mais ferina, o traço visual já guarda um tom de simpatia divertida que o torna ainda mais burlesco. Mas entre a época de J.Carlos e Péricles Maranhão e a de Angeli, Loredano ou Laerte, há um espaço razoável de tempo. Os níveis de imoralidade e impunidade certamente triplicaram e se sofisticaram.
É assim que o historiador do cômico se diverte ao mesmo tempo em que se obriga a trabalho árduo – captar os dois planos da piada gráfica: o efêmero que se liga à compreensão rápida da conjuntura – e o mais longo, que ativa as emoções do público, ligando-o à compreensão daquelas metáforas e personificações. É quando a caricatura deixa de ser apenas reflexo ou testemunho deformado e se transforma em história. Se enfileirarmos as centenas de piadas gráficas, certamente veríamos não apenas os grandes personagens, mas também os figurantes mudos da história brasileira, personificados em calungas de todos os tipos. Cabrião, Chico Pindoba, Tibúrcio, Zé Povo, Jeca, Juca Pato, Amigo da Onça, Fradim e tantos outros registrados em efêmeras folhas ilustradas. Tornaram-se partes tão íntimas do nosso cotidiano que sequer nos ocorria querer saber mais a respeito deles. Foram ainda projeções enviesadas dos seus próprios criadores – esses filósofos do efêmero nacional -, que percebiam que a educação sentimental do brasileiro começava com uma boa anedota. Exprimiam, pelo riso aflito e irreverente, uma gente manietada nos seus projetos, impotente em seus desejos, cronicamente burlada na sua cidadania.
Mas fiquem tranqüilos, pois, como diz Millôr Fernandes, ‘nenhum humorista atira pra matar’. E o sentido da piada gráfica é rápido, efêmero, prazeroso – e aciona o gatilho do burlesco: é sempre melhor ver governantes sapos do que engolir sapos dos mesmos governantes. Enfim, caricaturas traduzem uma experiência social dramática que, neste ‘país da piada pronta’ se suavizou no efêmero traço de um riso que liberta. Pois, no Brasil, como dizia outro filósofo nacional – o Barão de Itararé – ‘as tragédias não passam de comédias que sofrem do fígado’.
Elias Thomé Saliba é historiador, professor da USP e autor, entre outros livros, de Raízes do Riso”
PROPAGANDA
O Estado de S. Paulo
Publicidade busca caminho para abordar ‘cinqüentões’
“Levantamento mostra que, entre 150 filmes premiados em Cannes, nenhum era dirigido aos homens dessa faixa
Os padrões vigentes nas mensagens publicitárias, com as quais o público-alvo entre 50 e 65 anos não mais se identificam, insistem em descrevê-los como se fossem eternos quarentões grisalhos e bronzeados. ‘Os madurões são figuras clandestinas nas peças publicitárias’, assume o diretor de criação da MPM, Aaron Sutton. ‘Há uma mentalidade de que ninguém nessa faixa etária quer se ver retratado, prefere se imaginar como um homem mais jovem.’
Uma miopia, porque esse público com o atual poder de consumo e gosto por viagens, cultura e lazer não existia há 30 anos, nas avaliações de Ruy Lindenberg, da agência Leo Burnett. A pedido do Estado, ele fez um levantamento entre os 150 filmes publicitários premiados este ano em Cannes, e também nas peças registradas no último livro anual do clube de criação de Nova York. ‘Não localizei uma única imagem que valorizasse esse personagem mais maduro. Simplesmente inexiste.’
Há exceções para além da figura do avô passeando com seu neto, como se essa fosse a única razão de vida para um cidadão depois dos 60. Nos EUA, já há uma segmentação voltada para esse público, que, na prática, consome 80% dos cruzeiros marítimos oferecidos pela indústria turística. A publicidade das motocicletas Harley-Davidson, por exemplo, não se priva de expor homens grisalhos felizes com o objeto do desejo. ‘Eles são um fenômeno como marca no sentido de entender que seu consumidor envelheceu e continua apaixonado pela marca’, explica Silvio Matos, presidente da MatosGrey, que tem a conta da empresa no Brasil. ‘Há modelos que chegam a custar US$ 150 mil, e só homens mais maduros e de bom poder aquisitivo são os compradores.’
No Brasil, o exemplo mais feliz da construção de uma comunicação empenhada em combater o estereótipo da terceira idade é o da empresa de cosméticos Natura. Desde 1992, a companhia encarou a tarefa de provar que beleza não tem idade. ‘Trouxe para a frente das câmaras mulheres reais orgulhosas da aparência que cultivam’, diz a gerente de marketing da empresa, Tatiana Pignatari. ‘Houve uma mudança de postura cultural e de valores sobre a real beleza.’
Washington Olivetto, da W/Brasil, registra a antecipação da maturidade com garotas de 13 anos parecendo 20, e o prolongamento da juventude, com mulheres de 40 mais jovens .”
TELEVISÃO
Daniel Piza
Páginas do sexo
“Apesar de hoje ser dia de eleição, o tema não é baixaria; é apenas o mais antigo e atual dos temas. Não à toa, afinal, a maioria dos ‘spams’ – mensagens comerciais da internet – vem com ofertas de todos os tipos de atalhos para o prazer sexual, dirigido a mulheres que não destravam nunca ou maridos que não correspondem mais. E não à toa, num país como o Brasil, onde supostamente haveria liberdade maior nesse assunto, declarações ou imagens continuam a causar escândalos além da conta. A sensação é a de que quanto mais se fala sobre isso mais hipocrisia ou confusão aparece, em vez de esclarecimento.
É curioso notar, por exemplo, a reação causada pela novela Páginas da Vida quando, num dos depoimentos que exibe ao final de cada capítulo, ouvimos a história de uma mulher que descobriu sozinha o que nenhum homem lhe havia proporcionado até a meia-idade: o orgasmo. A edição poderia ter sido mais prudente e a emissora se desculpou, mas o caso obscureceu a questão que o autor Manoel Carlos pretendia levantar: o machismo brasileiro, de homens que só pensam em si próprios – na cama e fora dela – e, como vemos o tempo todo por aí, mal ajudam a criar os filhos. Só no mundo ingênuo da classe média não se imagina a quantidade de pessoas que devem ter se identificado com essa história. Se fosse uma mulher mais jovem e bonita, com linguagem mais elegante, ninguém ficaria tão chocado.
É verdade que a novela, com sua intenção de colar em casos reais, ironicamente se afasta do realismo ao colocar todas as situações num registro melodramático e estereotipado. A reincidente Helena de Regina Duarte é uma heroína sem nenhum defeito, um catálogo de virtudes politicamente corretas. E só por esse motivo é que ainda não encontrou felicidade duradoura ao lado de um homem. No entanto, como nas memórias de Danuza Leão, tudo gira em torno dessa possibilidade; como qualquer adolescente inexperiente, ela segue à espera do Grande e Eterno Amor. Talvez por isso os homens da novela sejam tão descoloridos, um bando que se divide em bobos ou infiéis. Mas ela tem o mérito de falar, como nas revistas femininas, daquilo que os homens fingem não ouvir.
Outro exemplo é o vídeo de Daniela Cicarelli com Tato Malzoni numa praia de Cádiz, que circulou pela Web e provocou comentários de todo tipo. Os comentários, note-se, eram a respeito dela, não dele – e não por ela ser mais famosa. Ela que ‘se expôs’. Ela que ‘devia ter sido mais discreta’. Ela que ‘troca de namorado a toda hora’. As mesmas pessoas que dizem tais coisas são as que, antes disso ou antes do casamento-mico com Ronaldo, ficavam admirando suas formas nas revistas e passarelas. As mulheres que hipervalorizam a aparência, a riqueza e a fofoca são também as que dizem que o mais importante é a ‘beleza interior’, à qual dedicam muito menos tempo e esforço do que ao sonho de ficar parecidas com a Daniela Cicarelli.
Quanto aos homens, sua inveja, bem brasileira, é indisfarçável. Ainda mais porque o filme é mais real, convincente, do que quase todas as cenas de sexo que se vêem na TV ou no cinema. A relação sexual é sempre mostrada de forma gráfica, com sol indireto ou contraluz, trilha sonora e closes nos rostos; jamais envolve carícias que não sejam beijos e posições além das mais aceitas. Isso não é exclusivo da linguagem audiovisual: a literatura também raramente consegue ir além do instante erótico sem detalhes, como no novo romance do hábil Vargas Llosa, Travessuras de uma Menina Má (Alfaguara), ou então, como em Joyce ou Proust, do erotismo como neurose. Não se descreve uma vida sexual que possa ser bem resolvida, não importa por quanto tempo ou em qual endereço.
Enquanto isso, os homens – que não precisam mais que duas canecas de chopp para começar a confessar aos amigos – se queixam da falta de iniciativa e ousadia das companheiras, não raro criadas ainda para agir como se sexo fosse secundário, como se depois da paixão inicial a rotina tivesse de ser parecida com a de um casal de irmãos. Sem perceber que o problema também está neles mesmos, muitos acabam optando por buscar fora o que não têm em casa e se tornam clientes de bordéis – ou arranjam amantes que começam como parceiras sexuais e logo depois se tornam eventuais substitutas da ‘titular’.
Por ainda distinguir mulher-pra-casar de mulher-pra-transar, homens assim são incapazes de satisfazer suas mulheres. Aqui, onde fazer topless na praia é um ato sujeito ao assédio mais grosseiro, até psicólogos e autores vividos usam a palavra ‘amor’ como se ela não dividisse quarto com a palavra ‘sexo’. Do outro lado, as mulheres em geral não pensam de forma diferente. Em parte, porque assimilaram essa fração do pensamento masculino ao longo dos tempos. Mas também porque insistem na estratégia de ocultar fatos para obter o que desejam, como quando dizem que o homem ‘não precisa ser bonito’ – justificando assim, em muitos casos, a escolha do marido feio e rico – e basta estar perto de um galã da Globo para caírem em histeria.
O que acontece no sexo é apenas a exacerbação do que acontece em outros aspectos da existência: a dose de realidade que se suporta é bem pequena. Ninguém perde dinheiro explorando a frustração sexual do público.
No amor sexual há ainda ‘acidentes’ como o que descreve Robert Hughes em seu mais recente livro, Things I Didn’t Know (Knopf). Trata-se da ótima autobiografia desse crítico de arte australiano radicado nos EUA. Os grandes momentos, apesar das descrições de sua infância em escola jesuítica e da perda de um filho de 33 anos, são aqueles em que narra o período que passou na Europa aos 20 e poucos anos e descobriu a arte de Duccio, Grünewald ou Pisano, a crítica de Kenneth Clark, George Orwell ou Kenneth Tynan, a riqueza exigente da tradição. Mesmo assim, o trecho antecipado na imprensa inglesa foi aquele em que conta como sua primeira mulher, embalada no clima da contracultura, e ele adotaram o relacionamento ‘aberto’ até que ela lhe contou que tinha ficado com Jimi Hendrix no banco traseiro da limusine do gênio do rock. Hughes reconhece que sua falta de estrutura interna o fez sofrer anos por isso.
DE LA MUSIQUE
O novo CD de Madeleine Peyroux, Half the Perfect World, talvez não vá fazer tanto sucesso quanto o anterior, Careless Love, por não ter uma música tão descontraída como Dance me to the Music. Como Diana Krall – que acaba de lançar o CD From this Moment on, só com ‘standards’, inclusive Insensatez, de Tom e Vinicius -, ela às vezes deixa tudo suave demais, embora trabalhe de modo mais criativo as durações das sílabas, como fica claro em sucessos como La Javanaise e Smile ou na faixa-título, de Leonard Cohen. Gostei especialmente do dueto com K.D. Lang na canção da grande Joni Mitchell, River, e da música de Tom Waits, The Heart of Saturday Night.
Esse grande Tom Waits, que ao lado de Elvis Costello e Cohen mantém viva a tradição da canção anglo-americana, está lançando novo CD agora, Orphans. E, interpretado por vozes femininas, tão distantes de sua rouquidão, como Madeleine Peyroux, Ute Lemper e até Anne Sofie von Otter, tem também sua Green Grass belamente cantada por Cibelle, a cantora brasileira radicada em Londres, no bom CD Shire of Dried Eletric Leaves.
POR QUE NÃO ME UFANO
Quando escrevi que existe ‘um lamento geral dos admiradores’ da MPB de Chico, Caetano e companhia, quis dizer que nós, admiradores, lamentamos que eles já não façam grandes discos há algum tempo. Há no Brasil um medo de criticar medalhões em todas as áreas. Quando isso acontece, é comum ver a ação do compadrio, que logo faz lobby para emplacar uma defesa em termos hiperbólicos – e então o cineasta ou o maestro na berlinda é chamado de ‘um dos maiores do mundo’…
Lamento, por exemplo, quando um grande diretor de teatro como Antunes Filho faz de A Pedra do Reino, de Ariano Suassuna, uma adaptação cansativa, quase um monólogo de Quaderna interrompido apenas pelas correrias e gritarias repetitivas que serviriam como ilustrações. E que ressalta a limitação ideológica da história de Suassuna, com sua pregação sebastianista do grande Brasil mestiço que era para ter sido e não foi.”
Leila Reis
A volta por cima
“Descuido, jogada de marketing, ingenuidade ou pé frio, não importa, o fato é que o idílio de Daniela Cicarelli com seu namorado, Tato Malzoni, em uma praia espanhola rendeu muito, mais até do que a disputa eleitoral que termina hoje após a apuração do último voto. As cenas calientes disponibilizadas aos que têm computador e acesso à internet (por meio de alguns sites) são o hit da temporada. Um assunto que teve mais audiência nos portais de notícias do que as manobras dos aloprados companheiros do presidente Lula em torno do tal dossiê.
E, claro, foi assunto obrigatório dos programas que se dedicam ao exercício diário da fofoca sobre a vida de artistas e de celebridades, que, mesmo tendo as imagens à mão, não tiveram como explorá-las em forma de vídeo – por restrições de horário ou por receio de também serem processados por Daniela. Como de costume, os programas puxaram a fieira com outros casos de exposições involuntárias da vida privada. Sobrou para Chico Buarque. O flagrante fotográfico – registrada por uma publicação impressa – do cantor aos beijos com uma jovem em uma praia carioca voltou à TV a título de ilustração.
A impudica demonstração pública de afeto de Daniela pelo namorado alimentou debates armados com a participação de especialistas de várias áreas – psicólogos, em especial – e de palpiteiros sem muita qualificação para dissecar as razões que levam uma pessoa tão conhecida a se expor tanto. Ou, o que levou a modelo a cometer mais um pecado, na visão do tribunal da TV. Apesar de não sermos um país tão moralista quantos os Estados Unidos, o caso Cicarelli rendeu à mídia – jornais, revistas e sites – uma repercussão semelhante à da cantora Janet Jackson, quando exibiu um seio nu no final do campeonato de futebol americano (Super Bowl).
Daniela não deve ter estranhado muito com o tratamento recebido pela televisão. Ela passou por algo parecido quando, em fevereiro de 2005, seu sonho de Cinderela – casar com o craque Ronaldinho em um castelo na França – tornou-se um pesadelo, ao expulsar a modelo Caroline Bittencourt da festa.
Como havia um jogador de futebol de prestígio internacional, até os telejornais mais sóbrios sentiram-se à vontade para explorar o vexame e suas repercussões.
Da mesma maneira que ocorreu naquela época, sobraram teorias para explicar o insólito nas discussões para telespectador ver. Entre as mais estapafúrdias, a de que as cenas apropriadas para se desenrolar no segredo da alcova teriam sido interpretadas propositalmente para a câmera do paparazzo com o objetivo de Daniela se promover. Ou que seria armação de Tato para divulgar sua virilidade e até uma combinação dela com a MTV para dar maior repercussão à 12ª Edição do Video Music Brasil (VMB), principal evento da emissora que Daniela apresentou na noite de quinta-feira.
Ao brincar no VMB com o fato de sua performance amorosa na praia ter suplantado o interesse nacional pelas denúncias geradas durante a disputa eleitoral pela presidência da República, Daniela deu uma espécie de volta por cima e acabou fazendo uma crítica que faz todo sentido. A de que a definição de escândalo está cada vez mais flexível no Brasil. E que os programas de TV estão aí para usar os que mais interessam a seu público específico.”
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