G K. Chesterton, jornalista e escritor inglês, em 1905 definia – certamente de forma provocativa – “herético” como “um homem cuja visão das coisas tem a ousadia de diferir da minha”. No ótimo documentário sobre o Paulo Vanzolini, Um Homem de Moral, ouve-se dele: “Do povo, de cada um, pessoalmente, eu não gosto, mas do povo em geral eu gosto muito!”.
A internet, reflexo como qualquer estrato da sociedade humana, é povoada de indivíduos nobres e também de vilões, dos que são desprendidos e altruístas e, também, dos que caluniam, cometem fraudes e crimes. Há indivíduos de todos os tipos na internet, e deles, certamente, podemos gostar ou não, mas não há como não gostar da rede em si.
E, para definir o que é esse “objeto” de que gostamos e entender do por quê, é necessário estabelecer as características da rede, até para preservá-las e defendê-las. É importante, ao mesmo tempo, lutar pela ortodoxia da internet e pela diversidade de seus heréticos participantes.
Em 24 de abril de 2014, após meses de trabalho coletivo que culminou em dois dias de reunião em São Paulo, cerca de mil participantes concordaram em gerar um conjunto de dois documentos fundamentais para a proteção e evolução da internet: uma declaração de princípios e o que discute a evolução do ecossistema de sua governança.
Defensores da rede
A NETmundial foi, mal comparando, um primeiro “concílio” da internet, onde se buscou identificar as características e os conceitos da rede. Da mesma forma com que foi fundamental para o cristianismo o trabalho basilar, estruturante e divulgador dos primeiros apóstolos e dos concílios que definiram o seu cânone, a NETmundial pretendeu, humildemente, ter contribuído para que a internet não perca o que a fez grande, onipresente e valiosa. Que tenhamos claro o que se pretende defender e preservar.
Esse conjunto de participantes, que veio de mais de 100 países e representou de forma equilibrada as comunidades interessadas na rede, gerou uma estruturação dos princípios a ser defendidos para que a internet sobreviva da forma com que foi concebida. Neles podemos ler, por exemplo, que “a internet deve continuar a ser uma rede de redes globalmente coerente, interconectada, estável, não fragmentada, escalável e acessível, baseada em um conjunto comum de identificadores únicos…”, que “…como um recurso global universal a internet deve ser estável, resistente, segura e confiável…”, e que “a internet deve ser preservada como um ambiente fértil e inovador baseado em uma arquitetura de sistema aberto, com colaboração voluntária, gestão coletiva e participação, apoiando a natureza ponta a ponta da internet aberta, e buscando resolver problemas técnicos de uma maneira consistente, aberta e colaborativa”. Finalmente, que “…a capacidade de inovar e criar está no âmago do notável crescimento da internet e trouxe grande valor para a sociedade global. A governança da internet deve continuar a permitir a inovação livre de barreiras”.
Considerando esse o primeiro esforço bem-sucedido para acordarem-se princípios que devem ser protegidos por todos, pode-se lê-lo como uma “boa nova” para os adeptos da rede. Um “evangelho” gerado no “concílio” que foi a reunião da NETmundial. E de São Paulo surgiu uma carta aos habitantes do novo mundo da rede, estabelecendo aspirações e desejos.
Nessa analogia de quase dois mil anos, é claro que “heresias” surgem e surgirão. Há os que gostariam de ver a internet com gestão centralizada e concentrada em Genebra, há os que veem nela apenas um ambiente de negócios fabulosos, há os que a veem como ferramenta de aglutinação de partidários, há os que a veem como uma experimentação fundamentalmente técnica. Um cânone torna mais claro para os defensores da rede o que pode ser feito para expurgá-la de heresias que buscam sua destruição.
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Demi Getschko é conselheiro do Comitê Gestor da Internet(CGI.BR) e colunista do Estado de S.Paulo