Harold Marques, nascido Aroldo Marques, estava exausto quando chegou a Gravatal, cidade de 10 635 habitantes em Santa Catarina, 2 438 quilômetros distante de sua Arapiraca natal, em Alagoas, onde “reina” como colunista social. Felizmente não lhe faltara trabalho para o trajeto de dezesseis horas, percorrido em um carro, dois aviões e um ônibus: ele assina colunas em três revistas diferentes (Salada Mag, Conceito e Matériaprima) e em dois jornais (Alagoas em Tempo Real e Tribuna Independente).
Depois do coffee break de boas-vindas, Marques teve meia hora para tomar um banho, hidratar a pele morena e ajeitar o cabelo, pintado num tom de loiro que oscila entre o de Gugu Liberato e o do cantor português Roberto Leal. Às oito da noite de 9 de agosto, um sábado, começava a cerimônia de abertura do 1º Congresso Nacional da Abramecom, a Associação Brasileira de Colunistas Sociais e de Mídia Eletrônica.
Na chegada ao salão principal do Hotel Internacional Termas do Gravatal, um dos vinte e poucos participantes distribuía exemplares da revista Sul Fashion, que poderia ser confundida com a Caras não fosse o nome diferente na capa. Um participante atilado observou que o projeto gráfico era “caras de um, focinhos do outro”. A edição manchetava: “Ortotrauma inaugura setor de raio X digital.”
“Amor, que coisa linda”, disse Aninha Monteiro, conhecida pelos íntimos como “A Rainha de Maceió”, a mais animada da sala de jantar. “Mas cadê minha foto aqui?”, perguntou a morena de “quase 50 anos”, exibindo sob o vestido de renda a letra A tatuada em vermelho nas costas. O publisher da Sul Fashion, que também é assessor de imprensa e engenheiro civil, explicou que Aninha ocupará lugar de destaque no próximo número (não se sabe quando, a periodicidade da revista varia).
A abertura do evento consistiu em selfies dos participantes, em diferentes combinações, imediatamente postadas nas redes sociais – o perfil de Aninha nas redes é Tudo Que Há, e o de Harold, Grand Monde VIP.
O Brasil conta hoje com cerca de vinte associações da “categoria que tem categoria”. Devido à frequência de arranca-rabos e cizânias, esse número vem crescendo. A Abramecom é a mais nova delas, e filiar-se a uma não significa abdicar das outras. A maioria dos presentes na cidade catarinense conhecida pelas fontes de água quente coleciona carteirinhas de várias agremiações e vai a congressos como se vai ao supermercado. No mês passado, houve um em Goiás. “Em novembro tem outro, no Costão do Santinho Resort, Golf & SPA. Se quiser, te descolo passagem”, ofereceu-me o presidente da neófita entidade, Arlan Alves.
Troca de favores
Os eventos são custeados por prefeituras, empresas e jornais locais. A lista de agradecimentos no panfleto do encontro de três dias elencava dezesseis patrocinadores, incluindo loja de decoração, restaurante, dois hotéis, duas agências de turismo e uma clínica.
A programação tende a ser voltada à propaganda dos apoiadores. Em Gravatal, depois do jantar, houve uma exposição sobre o potencial turístico das águas termais, seguida de palestra sobre lentes de contato dentais, biopreenchimento labial e os benefícios do botox estético, proferida pelo odontólogo Rafael Lima, “o mais respeitado do sul do estado”. Lima encerrou sua fala à meia-noite, e o DJ Jacko Dasantigas, que tocaria hits dos anos 90 para os seguidores de Ibrahim Sued, ficou ocioso. Todos foram dormir.
No dia seguinte, os despertadores soaram às sete para o café da manhã e o tour à cidade de Laguna, onde morou Anita Garibaldi. Uma representante da prefeitura lagunense se agregou à excursão com um fotógrafo. Fez-se um retrato de grupo. No Museu de Garibaldi, outro retrato. Em frente ao busto de Anita, mais um registro. Depois de um pulinho na coletiva de imprensa – convocada pelo prefeito para celebrar o salvamento de duas baleias francas que encalharam perto da costa –, o almoço, oferecimento do restaurante Caiçara.
Nos três dias, só uma refeição não foi grátis. Quem comeu na churrascaria Nossa Senhora Aparecida, à beira da rodovia BR-101, no trajeto entre Florianópolis e Gravatal, teve de bancar o próprio almoço: 23 reais pelo bufê, preferência geral, ou 42 reais pelo rodízio de carnes. “Já teve gente que pediu dinheiro para publicar coisas, mas o jabá não é a regra”, esclareceu Carminha Fortuna, colunista de Bauru, referindo-se à prática de trocar favores ou valor monetário por espaço noticioso.
Hora do espanto
Cinco dias antes da festa, recebi uma mensagem da Abramecom. A missiva pedia, com três pontos de exclamação, que os associados já tivessem publicado uma notícia sobre o encontro antes de ele acontecer. “É para eu entregar para o pessoal do hotel”, disse Arlan Alves. Como consequência do pré-requisito, o convescote foi anunciado em colunas do Rio Grande do Sul ao Pará. Acima de quase todas as notas, vinha estampada a mesma foto de Alves, um homem cuja ansiedade não parece caber na corpulência que ocupa um assento e meio no ônibus.
“Aqui é só o cleme de la cleme”, disse Harold Marques. “É crème!”, gritou um dos colegas do fundo do micro-ônibus em que o grupo se locomovia. Apenas um dos participantes do congresso ganha salário para exercer o ofício de colunista. Os demais têm fontes diversas de renda: uma é aposentada do Banco do Brasil, outro vende imóveis, um terceiro dá aulas de engenharia. Todos atuam como assessores de imprensa, passando uns aos outros informações e notas dos seus clientes.
“É uma vida de pouco dinheiro, mas muito poder”, definiu Harold, que se considera um “empreendedor” e, por isso, admirador de Joyce Pascowitch. Na churrascaria, o colunista de Arapiraca perguntou aos colegas se alguém conhecia a ex-colunista da Folha de S.Paulo e atual dona do site Glamurama e das revistas Joyce Pascowitch e Poder. Um deles respondeu que sim, e que ao menos vinte pessoas trabalham na empresa de Pascowitch. “E ela paga essa gente toda?”, abismou-se Harold, levando as duas mãos ao rosto como Macaulay Culkin em Esqueceram de Mim.
******
Chico Felitti, para a piauí