É complicado entender como uma atividade em que os profissionais têm como objetivo tão-somente divulgar fatos e opiniões possa tornar-se letal. Refiro-me à profissão de jornalista, muito bem definida no Dicionário Houaiss: ‘Pessoa que trabalha como redator, repórter, colunista ou diretor em órgão da imprensa ou programa jornalístico no rádio ou na televisão’. Não me refiro aos correspondentes de guerra, que têm como ícone máximo Ernest Hemingway durante a Guerra Civil Espanhola (1936/39) – ou, para os brasileiros, Rubem Braga, correspondente durante a Segunda Guerra Mundial (1939/45) junto a Força Expedicionária Brasileira (FEB). Os correspondentes de guerra sabem a priori o perigo que correm ao escolherem essa posição dentro da atividade de informar. Aludo àqueles que são brutalmente assassinados (será que existe assassinato que não seja brutal?) para que se ‘calem’.
Nos regimes totalitários não existe opinião pública, a política é de partido único e não há liberdade de expressão ou informação. A vida é fácil apenas para os jornalistas engajados no sistema. Para os outros a situação é difícil e perigosa, na melhor das hipóteses acabam encarcerados com julgamentos sumários e viciados e, na pior, simplesmente desaparecem.
Nos países onde há liberdade total de imprensa, o Estado não representa uma ameaça aos jornalistas, todavia o perigo da violência pode partir de grupos cuja investigação venha a ameaçar seus negócios.
Furo jornalístico
A violência nem sempre precisa ser física, pode ser intelectual. Como ocorreu recentemente no Brasil, onde jornalistas como José Inácio Werneck e Alberto Dines foram despedidos porque suas verdades contrariaram os interesses de donos de jornais; outros, como Jorge Kajuru e Fernando Massote, por terem ido contra um poderoso político. Estes dois últimos perderam seus empregos por terem desagradado com suas verdades o jovem, risonho, simpático e festeiro governador de Minas Gerais Aécio Neves [veja remissões abaixo], lembrando um caso muito parecido que aconteceu há mais de 40 anos, quando o também mineiro Juscelino Kubitschek, risonho e com ares de liberal, que fora governador de seu estado e estava exercendo a presidência da República, forçou o dono dos Diários Associados Assis Chateaubriand a acabar com o programa televisivo de Millôr Fernandes, pois este havia feito um chiste envolvendo a primeira-dama Sara Kubitschek.
Mas o assunto não é esse: trata-se da eliminação física, em países democráticos, de jornalistas que com suas informações contrariam interesses escusos. Houve o caso brasileiro de Tim Lopes, eliminado pois ia contra o crime organizado no Rio de Janeiro. Sua morte deu-se com requintes de crueldade para desencorajar aqueles que pretendessem seguir suas pegadas, e foi perpetrada por jovens bandidos que têm nas favelas seus pontos de distribuição de tóxicos.
No sábado (9/7), mais um jornalista foi assassinado – não no Brasil, mas em Moscou. Ele não denunciava pequenos bandidos, mas teve a petulância de denunciar os chamados ‘oligarcas’ – e, ao que tudo indica, esse fato decretou sua morte. Paul Khlebnikov, nascido em Nova York, de país russos, assumira havia pouco a redação moscovita da revista Forbes. Logo no primeiro número (maio), com um furo jornalístico fez com que a publicação se esgotasse nas bancas em poucas horas. Pela primeira vez ficou-se sabendo na Rússia em quanto montava a fortuna dos 100 mais ricos do país.
Fortuna corroída
Quem são esses oligarcas, esse punhado de tycoons (palavra inglesa, originária do Japão, significando negociante muito rico e poderoso, magnata) que controlam a riqueza do país? Giram pelos 40 anos, os mais importantes vieram da Komsomol (a antiga Liga dos Jovens Comunistas) ou da KGB, a polícia secreta soviética, e fizeram grandes negociatas com as privatizações ocorridas depois da queda do comunismo. Tornaram-se donos de bancos e de empresas petrolíferas e todos, de uma forma ou de outra, estavam envolvidos com o ex-presidente russo Boris Yeltsin e com sua filha, Tatiana. Em resumo são ex-diretores de estatais, ex-dirigentes de partido e de indústrias de extração mineral, ou simples intelectuais, mas espertos, com as amizades certas e sem escrúpulos.
O mais importante da listas da Forbes é Mikhail Kodorkovski, com um patrimônio de 15,2 bilhões de dólares. Durante o regime soviético era presidente da Fundação para a Iniciativa Juvenil, mas na realidade vendia computadores de contrabando. Depois tornou-se diretor de um banco que, na confusão da queda do regime comunista, passou a ser seu. Na grande desvalorização do rublo, com dólares na mão, ele comprou ações de companhias petrolíferas e tornou-se dono da empresa Yukos. Tinha a pretensão de também comprar a Sibnef: caso tivesse conseguido estaria produzindo 2,3 milhões de barris de petróleo por dia, o mesmo que o inteiro Kuwait.
Mas como se diz no Brasil, ‘malandro demais se atrapalha’. Mikhail atrapalhou-se comprando uma briga – grande, até para ele – com o atual presidente Vladimir Putin. Em 24 de outubro último, quando seu jato executivo pousou em Novosibirsk (grande centro à beira da ferrovia Transiberiana), lá o esperavam agentes da FSB (sucessora da KGB). Algemado, foi transferido para Moscou, onde está preso sob um leque de acusações que vão do enriquecimento ilícito à sonegação de impostos. Ele havia dito que preferia ser um preso político a um refugiado político. Hoje, talvez não pense assim, pois está sendo tratado como um criminoso comum, vendo sua fortuna ser corroída e ainda sob o risco de ser condenado a 10 anos de prisão.
O seguinte no ranking da nova fortuna russa é Romam Abramovich (12,5 bilhões de dólares), dono da Sibnef, a tal empresa petrolífera que Rhodorkovski queria absorver. Romam tornou-se famoso, em especial na Europa, pela compra do time de futebol inglês Chelsea. Ele vive em Londres, com seu dinheiro tenta fazer de seu time o melhor, mas não consegue ganhar o campeonato inglês nem comprar os jogadores que deseja dos times italianos. É desprezado como um arrivista bronco.
Declaração cínica
Na lista de Paul Khlebnikov consta ainda uma única mulher, em 35° lugar. Elena Baturina, tem apenas 1,1 bilhão de dólares, dedica-se ao mercado imobiliário, mas com um detalhe: seus negócios são favorecidos pelo marido que, por acaso, é o prefeito de Moscou.
Há suspeitas de que Boris Berezovskij esteja envolvido no assassinato de Khlebnikov. Ele o primo pobre do grupo, ocupa o 47° lugar na Forbes, com uma fortuna considerada ‘pequena’: 620 milhões de dólares. Berezovskij é um brilhante matemático que, segundo seus adversários, associado à máfia chechena obteve a venda exclusiva do carro mais procurado no país, o Zhiguli (versão russa do Fiat 147). A operação é simples: ele compra os veículos do fabricante por 3 mil dólares e os revende por 5 mil dólares. Este também entrou em rota de colisão com Putin e, para não ser preso, fugiu para a Inglaterra.
O governo russo já pediu a extradição de Berezovskij. Sobre ele, Paul Khlebnikov escreveu o livro-denúncia Kremlin, Boris Berezovskij and the looting of Russia (Kremlin, Boris Berezovskij e o saque da Rússia).
Khlebnikov havia sido ameaçado algumas vezes, mas continuava a seguir sua rotina de vida. Na tarde daquele sábado, às 22 horas (nesse período do ano, em Moscou, ainda é dia), deixou a redação da revista e estava chegando à estação do metrô quando um automóvel escuro se aproximou. Segundo testemunhas, um homem encapuzado desceu do carro chamando-o pelo nome; quando ele se virou para atender, foi atingido por diversos disparos de uma pistola Makarov, de uso exclusivo da polícia e das forças armadas russas. Não morreu imediatamente: ainda teve tempo de pedir emprestado a um transeunte o telefone celular e chamou um amigo da revista Newsweek. Tentou também chamar sua mulher sem sucesso, e morreu na ambulância.
Para alguns a culpa foi da vítima, como declarou cinicamente Igor Iakovenko, secretário da União dos Jornalistas Russos: ‘Khlebnikov havia estimado a fortuna de nosso homens de negócios, tocando um assunto muito sensível. Nos Estados Unidos isso é normal, mas ele quis fazê-lo aqui na Rússia e veja o que aconteceu’. Dito por quem disse, conclui-se que informar a verdade na Rússia é muito perigoso.
Textos de apoio
Dragosei, Fabrizio – ‘Il signor K.’ – Corriere Della Sera Magazine (8/7/04)
Visetti, Giampaolo – ‘Mosca, ucciso il giornalista che denuncio gli oligarchi’ – La Repubblica (11/7/04)
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Jornalista