Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Ética e informação

Um dos mais citados e principais pesquisadores da Ciência da Informação concedeu entrevista ao blog Dissertação Sobre Divulgação Científica, com o objetivo de expor pensamentos, ideias e discussões em geral que envolvem a chamada Sociedade da Informação e, como ele mesmo diz, a Sociedade de Mensagens.

Professor e pesquisador da Escola Superior de Mídias de Stuttgart, na Alemanha, o filósofo uruguaio Rafael Capurro, 69 anos, tem dedicado os seus estudos sobre a ética e a informação, abrangendo aspectos variados. Entre os temas abordados durante a entrevista estão: as dinâmicas do modo capitalista de produção, a informação em si, a política e a democracia na contemporaneidade, o papel das recentes redes sociotécnicas, os conflitos entre noções de público e privado, entre outros.

Confira a entrevista:

É possível definirmos uma ética contemporânea da informação? Em que se basearia?

Rafael Capurro – Se entendermos por ética, com Michel Foucault, a problematização da moral, ou seja, das normas, valores e costumes (em latim, mores), podemos definir uma ética contemporânea da informação como a problematização das morais comunicacionais, ou seja, das regras comunicacionais explícitas ou implícitas nas diversas sociedades. Estas normas morais estão, em parte, sancionadas por leis nacionais, assim como por acordos e declarações internacionais geradas, também, na época pré-digital. 

A rede digital global e interativa cria novas formas de comunicação e informação em todos os âmbitos da sociedade, com novas regras e novos valores que, às vezes, entram em conflitos com os sistemas morais e legais do período pré-digital.

É por isso que uma reflexão crítica, local e globalmente, é imprescindível se quisermos evitar que sobressaia a lei do mais forte ou simplesmente o mero costume. Por outro lado, uma ética contemporânea da informação deve considerar os desafios relacionados com a digitalização, não apenas na área da comunicação, mas também em todos os segmentos da ação humana. A ética da informação contemporânea tem que se basear em uma reflexão crítica histórica, a fim de permitirmos reconhecer e relativizar as cegueira e obsessões das sociedades contemporâneas da informação. Portanto, além da informação e da comunicação nos meios digitais, é importante incorporamos também outros meios e épocas.

O senhor já expôs que, segundo o conceito filosófico clássico e metafísico, a informação pode ser entendida como formação de um espírito. Principalmente na contemporaneidade, é possível identificar de que espírito se trata, ou pelo menos a tendência de sua formação, dada a pluralidade sociocultural dos nossos dias?

R.C. – O termo latino informatio, em seu sentido de dar forma a algo, já era utilizado na antiguidade clássica, assim como na filosofia medieval, não apenas na perspectiva de dar forma ao espírito ou ao caráter de um indivíduo, mas também aos costumes e normas de uma sociedade (informatio morum). Ambos os sentidos da ética clássica da informação estão baseados em uma epistemologia segundo a qual o conhecimento é um processo de formar os sentidos (informatio sensus) e a razão (informatio intellectus).

Os filósofos e teólogos medievais, como Tomás de Aquino, distinguiam também no nível ontológico entre creatio, ou seja, a criação do mundo por um Deus transcendente, e informatio, ou seja, o processo de “in-formação” de um substrato já existente (informatio materiae). Informatio é uma tradução latina sobre problemas considerados pela ontologia e pela epistemologia gregas, em especial por Platão e Aristóteles, mas também pelo neoplatonismo e pela filosofia helenística. Forma é o equivalente a conceitos-chave filosóficos, tais como eidos, idéa, morphé e tipos. Toda tradução abre novas perspectivas, mas inescapavelmente obscurece matizes e contextos originais.

A pluralidade sociocultural ocorria também em outras épocas. É interessante investigar como os conceitos e as teorias gregas foram sendo traduzidas, atingindo as culturas persas, árabes e judias medievais. 

A situação atual de uma pluralidade de culturas que interagem na rede digital tem a potencialidade de criar uma nova forma de universalidade ética pluralista, que alude à pergunta “de que espírito se trata?”. Creio que seja um espírito plural, em que os espíritos, seguindo também a tradição metafísica ocidental, sempre interagem no mundo digital. Mas, a esfera digital se entrelaça cada vez mais com a esfera física, conduzindo à “Internet das coisas”, que sempre é também uma Internet das pessoas, com os seus condicionamentos históricos, geográficos, políticos etc.

A rede digital e as possibilidades de existência no século XXI podem ser pensadas não só em sua forma superficial, mas também em sua profundidade, o que significa descobrir quem são os atores humanos e a forma da sua autocompreensão. As formas, valores e normas de interação e reconhecimento são objeto de reflexão ética desde a antiguidade, com variações, também, na era digital.

Assim, o espírito do século XXI materializado, física e digitalmente, pode ser pensado enquanto possibilidades de interação na rede, com perspectivas novas de ser com os outros. Este caminho vem sendo delineado desde o século XIX, com as oportunidades de viagens pelo mundo em transportes modernos, especialmente a aviação. Porém, a rede possibilita a uma maior quantidade de pessoas se comunicarem sem deslocamento físico e de forma economicamente acessível.

No entanto, assim como no caso dos meios de transporte de massa, estas novas dinâmicas não significam por si a realização de diálogos e mútua compreensão intercultural, pois o cenário pode desdobrar para outros caminhos.

Como as dinâmicas e multiplicidades socioculturais impactam os processos de legitimação da informação?

R.C. – Os processos de legitimação informacional e comunicacional passam por uma perspectiva top-down, com agentes políticos e institucionais atuando em favor dos grandes monopólios digitais, como o Facebook e o Google. Em contrapartida, a sociedade civil tem tomado consciência da sua responsabilidade e da necessidade de participar mais ativamente da “in-formação” nas sociedades digitais do século XXI. Esta perspectiva, chamada de bottom-up, tem lugar em diferentes fóruns e iniciativas. A Cúpula Mundial da Sociedade da Informação iniciou uma contribuição para a formação de um dinamismo entre o poder político, os agentes econômicos e a sociedade civil, visando formar uma governabilidade das redes baseadas em regras limpas dos jogos sociais.

Porém, não devemos duvidar que os interesses políticos e econômicos põem limites e condições para a legitimação, como se pode perceber claramente no caso da Agência de Segurança Nacional dos Estados Unidos e das atividades dos grandes monopólios digitais, regidos por motivações políticas e/ou de ganância econômica, com leis nacionais entrando em conflito com os princípios e valores de outras nações, ou mesmo com tratados internacionais.

Como conceitos de estudos de vanguarda, a exemplo da física quântica, podem afetar a compreensão e a noção de informação?

R.C. – Partamos do princípio de que há diversas noções e teorias da informação, entre as quais as relacionadas às Ciências Naturais. As discussões neste contexto teve início em Viena, há uns quinze anos, sem esquecermos os debates do início do século XIX. O físico e filósofo Carl Friedrich von Weizsäcker formulou um conceito de informação relacionado tanto a fenômenos físicos, como a biológicos e sociais. Os estudos dele sobre teoria quântica da informação logo foram desenvolvidas por Holger Lyre.

O importante é observar a pluralidade de teorias da informação como algo positivo e característico de nossa época, retomando o conceito de Wittgenstein sobre os jogos da linguagem e vendo em que forma se condicionam, influenciam, incluem e/o excluem mutuamente. É um relativismo no sentido original da palavra, ou seja, tomar consciência dos diversos tipos de relações entre as teorias científicas, tanto das Ciências Humanas, como das Naturais, sem perder de vista os usos deste conceito na vida cotidiana, incluindo a sua história em diferentes línguas e culturas. Tudo isso sem cair no erro de todos os “-ismos”, sem absolutizar a pluralidade, nem tentar reduzi-la a um suposto sentido originário, ou tomado um dos possíveis sentidos como o único válido. Este debate tem sido chamado pelos colegas vieneses Peter Fleissner e Wolfgang Hofkirchner de “o trilema de Capurro”.

Qual é o significado da liberdade sócio-humana no mundo tecnológico e digital?

R.C. – Por estarmos no início da era digital, é muito complicado responder esta pregunta, pois tanto a dimensão política quanto a individual, neste marco histórico, estão em formação e transformação.

Se entendermos a liberdade em um jogo de multiplicidade de seres humanos conscientes de sua contingencia e de sua capacidade de dar diversas respostas a possíveis formas da vida em comum no mundo compartilhado, então, está claro que o jogo com suas regras está condicionado por passados e futuros individuais e coletivos. Como em todos os jogos, sempre há movimentos imprevistos ou imprevisíveis que exigem um espírito aberto e atento para percepções e convívios. Tal dimensão de imprevisibilidade é própria do existir humano em um mundo comum aberto, espacial e temporal, em forma tridimensional (passado, presente, futuro).

Economicamente, vivemos a incapacidade para perceber essa dimensão de imprevisibilidade baseada nas características espaço-temporais do existir humano. Vemos operações com base em uma visão ideal do homo economicus, assim como a uma fé nos métodos quantitativos capazes, aparentemente, de predizer o futuro das relações, interesses e desejos sociais, da liberdade. Aqui, surge o interesse pela acumulação massiva e global dos dados digitais (Big Data). 

Tal desejo de um saber absoluto digital tem raízes teológicas. Já a concepção teológica da providência divina aparecia em contradição com a liberdade contingente humana. Em caso de um poder do saber digital aparentemente absoluto, o conflito se torna real e a liberdade humana aparece em sua fragilidade a todo o nível da vida política, econômica e social. A tarefa de pensar essas trocas é inevitável se quisermos ser responsáveis por nossas vidas.

Qual é o grau de liberdade humana nos processos de produção e circulação da informação, assim como nas (in) formações das pessoas?

R.C. – Os sistemas de vigilância dos mundos digitais e físicos crescem diariamente com aspectos opressores e também libertadores. Em muitos casos, esses sistemas aspiram a dar mais segurança individual e social, mas muitas vezes em detrimento das liberdades individuais. Em situações diversas, é difícil legitimar isto em sociedades democráticas. Assim como a democracia moderna intercambiou com os meios de comunicação de massa do século XX, as redes digitais globais alternativas estão intercambiando com os modos de ação e reflexão política e legal.

A rede digital é um meio global interativo diferente dos meios de massa tradicionais, esta com estrutura hierárquica de um-a-muitos. Nos últimos anos, tem surgido monopólios e centros de poder que questionam o caráter originalmente utópico-democrático da Internet, fazendo-a parecer como uma distopia. Isto se vê claramente em formas insólitas de vigilância individual e global na confluência do mundo físico e do digital. A sociedade de massa do início do século XX, tematizada por José Ortega e Gasset na obra “La rebelión de las masas”, tem se transformado em uma massa de dados digitais individualizados ou individualizáveis que “in-formam” ao mundo físico.

Estamos em transição de uma utopia para uma distopia sociodigital, sem vermos claramente quais são os mecanismos políticos e os exercícios éticos individuais e sociais próprios a uma “antropotécnica” (sugestão de leitura: Peter Sloterdijk: Has de cambiar tu vida, 2012), que nos permitiriam tomar uma certa distância dos condicionamentos digitais atuais. Só assim nós poderíamos, em parte, protegermos do que se apodera de nossos dados, até mesmo com o nosso consentimento, devido ao desejo de comunicar tudo a todos e a todo o momento. Isto é uma espécie de imperativo ético da era digital, que subjaz como moral das redes sociais digitais e forma parte essencial do negócio.

Questionar essa moral é um perigo, tanto para os poderes políticos quanto para os econômicos na era digital. A dimensão da privacidade e suas correlações, o público, não é algo obsoleto pertencente à sociedade burguesa como via Karl Marx no século XIX e como o vê, por razões opostas, Mark Zuckerberg no século XXI. É, porém, uma constante da existência humana com diversas possibilidades de se transformar de acordo com os diferentes marcos históricos, sistemas políticos, econômicos e culturais.

Sem a diferença entre o público e o privado, a existência humana se massifica ou atomiza. A liberdade de manifestar-se ou ocultar-se é algo básico para seres contingentes que jogam suas vidas com, para e às vezes contra os outros, sem a segurança de conhecer suficientemente os outros ou o alcance de suas próprias intenções. Aqui está o erro da visão do homo economicus, assim como o de pensar o ser humano como um ser puramente racional, esquecendo que o saber sobre si mesmo e sobre os outros é sempre limitado e frágil.

Essa contingência e fragilidade são o fundamento da liberdade humana. As “antropotécnicas”, referidas pelo filósofo Peter Sloterdijk, têm a ver com formas e exercícios de autoproteção, tanto no mundo físico quanto no digital.

É necessário tomar consciência de que as regras e normas éticas e legais são parte de procedimientos inmunitarios, que hão de ser questionados e adaptados permanentemente. Uma moral ou um sistema legal que se absolutiza e não seja capaz de adaptar-se a novos condicionamentos tecnológicos e sociais é tão letal quanto um sistema imunitário biológico que não sabe lidar com trocas e mudanças do meio ambiente.

Como têm ocorrido as lutas pelo poder neste mundo virtual da informação?

R.C. – Estamos apenas no início das lutas de poder na era digital, sendo semelhantes às lutas pelo poder sobre terras nas sociedades agrárias ou feudais, assim como às lutas da sociedade industrial, especialmente dos impérios coloniais baseados no domínio dos oceanos e do espaço aéreo. 

O mundo virtual é assim chamado tomando como referência mundos precedentes. Paradoxalmente, essa virtualidade é, hoje, mais real ainda. Algo semelhante experimentamos, por exemplo, com o cinema, no qual a criação de uma estrela na tela representa maior reconhecimento social e, portanto, é mais real do que a pessoa física.

A digitalização é um caminho inevitável para a informação nos dias atuais?

R.C. – Eu entendo que nós podemos falar sobre digitalização como um evento fundamental na história da humanidade, comparando-a, inclusive, com a invenção da escrita ou da imprensa. Tais inventos, que às vezes relacionam-se com descobrimentos, marcam uma época e se manifestam como “destino inevitável” post factum, ou seja, nada poderia prevê-los, tendo surgimentos a partir de um conjunto de fatores contingentes.

A informação digitalizada e globalizada possui um caráter ontológico diferente da informação impressa, da escritura em manuscritos ou mesmo em comparação com a transmissão oral. Trata-se de um tema complexo, já que aborda a dimensão da memória individual e coletiva e a responsabilidade política de criar instituições que garantam a transmissão da cultura digital, assim como foram e seguem sendo as bibliotecas, os arquivos e as instituições de ensino, como escolas e universidades, em relação aos meios impressos e à transmissão oral. A respeito disso, cabe investigação sobre o conceito de ”médiologie”, de Régis Debray.

Como o senhor observa o conflito entre o acesso aberto à informação científica e tecnológica e a restrição a este tipo de informação?

R.C. – Se por acesso aberto se entende a possibilidade de publicar, por exemplo, artigos científicos em revistas acessíveis, não vejo um conflito no ganho dos mediadores dos sistemas comerciais pelos frutos dos trabalhos por eles realizados.

Porém, claro que se trata de um sistema já em crise, como se observa na rede digital cuja informação é livre, aparentemente, no sentido da gratuidade, podendo ser distribuída sem a necessidade dos mediadores clássicos.

Se pensarmos que a informação científica e tecnológica produzidas pelas instituições estatais é custeada pela sociedade, é difícil entender porque tais organizações têm que comprar por consideráveis valores os seus próprios produtos, que podem estar acessíveis online.

Em busca da resolução deste conflito entre o interesse geral da sociedade e o interesse individual – tanto do autor como dos mediadores das obras –, a época moderna criou certos mecanismos de proteção, como direitos do autor, as patentes e as marcas registradas. Tais mecanismos entraram em crise no mundo digital e globalizado, no qual o custo do sustento material da informação e sua distribuição é relativa e praticamente nulo. Há diversos modelos elaborados, como o Creative Commons (CC), para tentar solucionar tensões do poder neste campo. Surgiram, também, novas formas de produção e distribuição de conhecimentos utilizando as redes sociais, os blogs etc.

O problema ético que subjaz a este debate é a ideia de que a humanidade só pode sobreviver se os processos de conhecimento do mundo, que nos permite criar novas condições de vida e melhorá-las, não estejam bloqueados por grupos ou monopólios que queiram tomar proveito às custas do que é comum a todos. Esta é a “tragedias dos comuns” (Garret Hardin), ou seja, o direito de manter aberto o espírito e o conhecimento humano, bem como os seus produtos, sempre corre o risco de ser utilizado por grupos particulares, em detrimento dos interesses comuns.

A racionalidade individual entra em conflito com a racionalidade social. Porém, é claro que os problemas são diferentes, possuem peculiaridades, como no caso da produção científica e tecnológica em companhias privadas e no caso de escritores e todos aqueles que vivem de sua produção literária e artística.

Não ter em conta estes interesses legítimos de diversos grupos sociais que defendem o conhecimento livre é um sinal de ingenuidade filosófica e uma perda de sentido da complexidade do mundo humano com seus interesses e conflitos.

O senhor já disse que a fascinação por aspectos técnicos e digitais da sociedade contribuem para perdermos de vista a nossa identidade em processos de informação que nos revelam e ocultam. O que devemos fazer para manter a atenção sobre quem somos? E há diferença entre quem somos e quem somos digitalmente?

R.C. – As chamadas Novas Tecnologias da Informação e Comunicação (TIC´s) abrem novos modos de ser com os outros. Já não somos os mesmos, e neste sentido ontológico, as TIC´s, como todas as tecnologias, não são neutras. Porém, tão pouco elas nos apresentam, inexoravelmente, um futuro utópico ou distópico. É importante refletirmos, perguntarmos “quem sou?” “quem és?” “quem somos?” “quem são?”, em contexto da era digital, a fim de deixar emergir a diferença entre o que e quem, de forma a nos compreendermos não apenas como algo, mas como alguém, que é a diferença ética.

Conhecermos e reconhecermos como “quem” e não apenas como “o quê” é um fundamento de uma universalidade ética pluralista, a que me referia anteriormente. O processo de mútuo reconhecimento é a base para a criação da identidade. No entanto, a identidade humana não é algo substancial e fixo, mas aflora de forma contingente nos jogos sociais em diferentes níveis, contextos e objetivos.

A reputação pessoal desempenha um papel importante nas esferas sociais, políticas e profissionais. O que devemos fazer não é manter a concentração em quem somos real e digitalmente, mas manter a liberdade para nos manifestarmos ou ocultarmos em variados contextos. Tal liberdade está cada vez mais ameaçada, restrita e, às vezes, eliminada. Tudo isso exige um debate ético, legal, político, econômico e cultural.

A interação social é de caráter lúdico. Carecemos de um saber absoluto sobre o mundo em sua tridimensionalidade “des-ocultante” espaço-temporal e sobre nós mesmos, tanto a respeito dos processos biológicos, quanto da história contingente de nossas vidas. O jogo social se caracteriza pela liberdade de revelar ou ocultar quem somos em diversos contextos. Na medida em que materializamos estas opções em forma, por exemplo, de dados digitais, corremos o risco de que outros manipulem nossas identidades assim fixadas.

No dia 13 de maio de 2014, o Tribunal de Justiça da União Europeia outorgou o direito dos usuários exigirem a retirada de informações pessoais nos sites. Este direito não significa a impossibilidade de excluir ou fazer esquecer determinado fato. Trata-se de excluir pegadas, rastros digitais, ou seja, formas em que um quem se revela e coisifica digitalmente como um o quê.

Como ocorre a relação entre os paradigmas físico, cognitivo e social da informação? Podemos pensar que ainda estamos em um paradigma social?

R.C. – Os três paradigmas têm a suas legitimidades e os seus sentidos, permitindo diversos tipos de análises quantitativas e qualitativas. Não devemos, porém, fazer uma interpretação histórica linear de um processo que partiria de uma visão materialista ou fisicalista da informação, passando por uma visão cognitiva para chegar, finalmente, à verdadeira visão social.

Há elementos sociais no paradigma físico, já que, por exemplo, os dados bibliográficos armazenados em um computador têm como referência autores e comunidades. O mesmo vale para outros aspectos de cada perspectiva. Todavia, estamos no paradigma social, no sentido de que, por exemplo, as redes sociais têm grande relevância para o intercâmbio de informação. Por outro lado, vemos como as grandes companhias digitais baseiam as suas estratégias de mercado em crescentes acumulações de dados sobre os usuários e clientes. Estes estão fisicamente armazenados em grandes centros de computação, portanto, são físicos e digitais. O usuário é para essas empresas meios que permitem a elas acumular capital. Se pensarmos estas relações desde a perspectiva marxista, é claro que o que finalmente interessa é o capital e o poder que este capital proporciona aos que reúnem, avaliam e lidam com dados sobre os usuários.

Por este olhar, vivemos em uma economia capitalista cuja base é a informação digital, havendo relação entre acumulação de informação e acumulação de capital. Não creio, porém, que estamos suficientemente preparados para análises críticas desta situação histórica, já que o processo de digitalização está em pleno desenvolvimento. 
No entanto, podemos, sim, acompanhar este processo com estudos críticos interdisciplinares que mostram formas positivas e negativas do impacto do capitalismo digital em diversas sociedades, assim como no nível global. Uma crítica ao que poderíamos chamar de informacionalismo digital não significa conceber o fenômeno em questão como algo negativo, mas sim ver sua hipertrofia, ou seja, seu “-ismo”, como geração de situações e processos sociais e ecológicos insustentáveis.

Qual é a atual realidade histórica da Ciência da Informação?

R.C. – Creio que seguimos concebendo a Ciência da Informação como fazíamos durante a década de 1970, quando o foco das pesquisas era para processos de tratamento e recuperação da informação de dados (bibliográficos) digitais. A information science foi concebida como information retrieval science.

Tanto as Ciências Sociais quanto as ciências dos meios de comunicação se ocupam hoje de muitos aspectos que, para a CI, são entendidos sob perspectivas específicas, correspondendo à relevância da informação na sociedade atual.

Um processo de reformulação do objeto da CI confronta, inevitavelmente, com barreiras das tradições acadêmicas. Por outro lado, entendo que em muitos países, especialmente no Brasil, a consciência da necessidade de intercâmbio e trocas está muito presente, tanto nos estudantes quanto nos professores. Percebemos isto em novas revistas acadêmicas neste campo, assim como em congressos e fóruns.

O que precisamos saber sobre o conceito de informação, na contribuição para o desenvolvimento da Ciência da Informação?

R.C. – O importante é aprender a perceber criticamente o fenômeno da informação em todos os âmbitos da via social. A CI é de caráter interdisciplinar, ou seja, sua perspectiva formal, os fenômenos da informação, tem que buscar sua correlação concreta em determinados âmbitos da realidade. Isto implica em uma pluralidade de metodologias e também em estar atento para a possível relevância de pesquisas em outros campos, que possam parecer estrangeiros, mas com potencial de contribuição.

Qual é a sua questão-chave de pesquisa hoje em dia na Ciência da Informação?

R.C. – Com pesquisa focada na questão da ética da informação, a minha pergunta-chave é, basicamente, “o que é o ser humano na era digital?”.

Por que o senhor declarou que o conceito de informação deve estar relacionado com outros conceitos, como o de documentação e o de meios de comunicação?

R.C. – Nenhum conceito existe isoladamente, desconectado de redes de relações semânticas e pragmáticas, ou seja, em jogos de linguagem. É importante, portanto, estar atento para tais jogos, de forma a perceber os fenômenos em questão.

No caso da informação, há históricos e evidentes envolvimentos deste conceito com a documentação e os meios de comunicação. Tais relações vão mais além, ainda, dos fenômenos que surgem na era digital. É relevante haver análise “genealógica” no sentido que dão Nietzsche e Foucault a este termo, para perceber as transformações que são não apenas conceituais, mas sim existenciais.

Muitos estudos se referem ao tema da informação, mas sem utilizar este termo. Isso pode ser prejudicial para a pesquisa e o pensamento no campo da investigação informacional?

R.C. – Pelo contrário. Não creio que o uso de um termo seja necessariamente prejudicial, neste sentido. Às vezes, o não uso voluntário de um termo pode ser estratégico para evitar um determinado jogo semântico que obscurece justamente algo que se quer ressaltar.

Particularmente, percebi esta necessidade quando busquei um termo correspondente ao de informação, na antiguidade greco-latina e me deparei com o fenômeno da mensagem e com o termo grego “angelia”. Essa observação está na minha tese de doutorado, publicada em 1978.

Porém, apenas muitos anos depois eu pude esboçar o que chamo de ”angéletica” ou “teoria das mensagens/mensageiros”, que me levou a uma tarefa interdisciplinar e à publicação de “Messages and Mesengers. Angeletics as an Approach to the Phenomenology of Communication“. Entendo ser apropriado afirmar que vivemos em sociedades de mensagens e que este termo não é idêntico ao de sociedade da informação e comunicação, ainda que se reportem entre si.

A informação tem, necessariamente, um compromisso com o conhecimento, e vice-versa? E ela tem, essencialmente, uma função social?

R.C. – A informação vista como um fenômeno humano está intimamente relacionada com processos de conhecimento e tem função social. Niklas Luhmann expressa isso de forma muito concisa e clara quando disse que o fenômeno da comunicação, que para ele não se reduz a processos psíquico-humanos, consta de três dimensões: uma oferta de sentido (mitteilung); uma seleção de sentido (information); e uma integração desta seleção com o sistema em que é realizada (verstehen).

O interessante neste esquema conceitual é que os termos “mitteilung” e “information” em alemão corrente são sinônimos. Luhmann opera com uma diferença conceitual que é ao mesmo tempo uma diferença terminológica. É um caso interessante para estudar como a linguagem diária pode levar a novas concepções e teorias que mostram fenômenos que, como neste caso, por utilizar termos considerados sinônimos, não são percebidos em sua especificidade.

É justamente o conceito de mitteilung no sentido da mensagem, o termo e conceito que eu buscava quando me perguntava qual era o equivalente do termo atual informação na tradição grega (angelía) e latina (notitia).

Há, portanto, uma diferença entre mensagem e informação e a Ciência da Informação deveria ser consciente desta diferença e integrá-la em seu objeto de estudo.

O senhor concorda que a Ciência da Informação chega a tratar bastante sobre as relações existentes no modelo de produção capitalista, mas explora pouco os conflitos religiosos e as informações teológicas, embora tais estejam na essência do desenvolvimento socio-humano do capitalismo?

R.C. – Há uma relação fenomenológica muito íntima entre informação, capital e religião. O fato de o fenômeno religioso não ter sido tematizado o suficiente pela CI mostra, mais uma vez, a necessidade de trocas paradigmáticas. Tanto as religiões quanto o seu substituto moderno, o capital, têm ambições universais de salvação que se baseiam no que poderíamos chamar de mensagem forte, ou seja, algo que implica uma entrega existencial individual e coletiva calcada em textos sagrados, ritos, promessas etc. 

As deusas do capital, que antes eram deusas teológico-morais, são atualmente deusas de informação e têm, muitas vezes, caráter quase sagrado a que fazem alusão, por exemplo, os políticos quando querem fundamentá-las nos direitos humanos ou na constituição. Porém, estas relações entre Deus, informação e capital são, evidentemente, mais antigas do que as suas formas modernas e as suas expressões atuais na era digital. Neste sentido, a CI teria que buscar suas raízes, por exemplo, na crítica platônica, ou na cultura egípcia e babilônica, para citar algumas fontes da civilização ocidental que estão relacionadas a culturas do chamado “extremo oriente”. Por isso, creio que o diálogo intercultural sobre regras, costumes e valores, que subjazem a diversas práticas comunicacionais através dos séculos, é algo fundamental para compreender nossas sociedades de mensagens. Chamo este campo de investigação de ética intercultural da informação.

Podemos considerar que a Ciência da Informação em seu aspecto acadêmico atua, em primeiro lugar, no nível filosófico?

R.C. – Eu diria que o que está ausente na CI é justamente o pensamento filosófico, que é interpretado como algo marginal ou supérfluo, frente aos métodos oriundos da informática ou da matemática. Digo isso sem nenhum menosprezo por tais disciplinas que têm suas raízes também na filosofia ocidental e que estão na base da presente sociedade tecnológica. Porém, justamente por estar na base é preciso pensá-las, ou seja, questioná-las filosoficamente, o que significa também uma tarefa ética.

O senhor gostaria de fazer algum comentário final?

R.C. – Apenas de agradecer ao professor Oscar Krütli, da província de Córdoba, Argentina, pela participação nesta entrevista, complementando informações e expondo pensamentos.

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Bruno Lara é jornalista, doutorando do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação (PPGCI) do Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia (IBICT) e da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), mesmo programa pelo qual obteve o mestrado (2013)