Diz-me um tanto surpresa uma jovem repórter que a campanha eleitoral brasileira lhe faz lembrar uma soap opera. Mantenho o fulcro da opinião em inglês porque a jovem é uma free-lancer norte-americana que trabalhou na cobertura da Copa do Mundo e do processo eleitoral.
Na verdade, não é nada novo esse ponto de vista nem contempla só o Brasil: Bruce Newman, famoso especialista em marketing político, consultor do ex-presidente Bill Clinton, já havia assinalado que “a televisão tornou-se tão importante na política que os políticos precisam ter as mesmas habilidades dos atores”. Chegou a mesmo a dizer que “para muitos americanos, a Casa Branca é apenas mais uma estação de tevê”.
Tanto assim que o embate eleitoral-judiciário entre Al Gore e George Bush na disputa pela Presidência da República foi descrito pela imprensa de lá como uma soap opera, com heróis e vilões, surpresas cotidianas, clímax e doses razoáveis de suspense. Soap opera e telenovela brasileira são praticamente a mesma coisa, de modo que a referência americana é válida para o que aqui se produz.
Não falta quem ateste a decadência do formato novelesco, mas o fato é que depois de meio século de persistência na televisão aberta o gênero folhetinesco continua seduzindo públicos variados. Do ponto de vista da história da literatura, o folhetim é uma derivação do romance e corresponde à definição mais simples do gênero em sua origem: a realização da exigência literária mais elementar, ou seja, oferecer uma narrativa fácil e colorida, nada mais do que um pouco de imaginação.
O que hoje deseja o público de telenovela é a mesma coisa que queria o público do romance europeu até 1800, ou seja, divertir-se ou comover-se. Foi um fenômeno com força progressiva entre o século 17 e o 19, em consonância com a revolução democrática burguesa na Europa, quando a moderna consciência de si estimulava o gosto pela expressão de sentimentos e emoções.
Carga dramática
A substituição do produto narrativo em papel por uma substância quase imaterial – primeiro a sonoridade radiofônica e, depois, o vídeo televisivo – não oferece ao público nenhum instrumento de meditação nem o desfrute da sutileza que fizeram do romance uma arte rica e altamente evoluída. Não. Um gênero como a telenovela é simplesmente a transposição do folhetim para o meio eletrônico, com todos os adornos permitidos pela tecnologia em voga.
Telenovela é narrativa eletrônica de grande consumo, logo, o resultado industrial de uma retórica de captura da atenção por meio de conteúdos fabulativos aglutinadores de elementos míticos (que giram em torno de dualidades morais) e informações (mesmo quando são “factoides”) relativas ao universo imaginário e real-histórico de um público determinado.
Mas é algo a ser examinado com cuidado. Como toda narrativa, o folhetim articula o tempo do mundo à experiência humana e à linguagem, permitindo que o leitor ou o ouvinte vivencie imaginariamente os acontecimentos relatados. Essa articulação requer um princípio organizativo que se decompõe em (a) “situação de falta para um certo ser”; (b) tomada de consciência da falta por esse ser; (c) o que o leva a tornar-se agente de um fazer (para remediar a falta).
Estes elementos ficcionais podem ser encontrados numa configuração real esvaziada de força histórica, a exemplo dos ritos eleitorais de uma democracia “representativa” que perdeu os laços com a representação. Como numa telenovela, não há confronto de ideias, mas de personagens. No plano do real-histórico, todos assemelham-se nas alianças com o grande capital e com as facções ultraconservadoras da vida nacional.
Em outras palavras, numa conjuntura tecnossocial que ficcionaliza o cotidiano, são tênues os limites entre a realidade histórica e o imaginário, o real pode ser encenado como telenovela.
Na “telenovela” eleitoral que antecedeu o primeiro turno, a “situação de falta” explorada pelos partidos oposicionistas concentrava-se, em termos econômicos, no baixo crescimento do PIB e, em termos morais, nos escândalos direta ou indiretamente ligados ao partido do governo, coberto de lama, é preciso que se diga. A “tomada de consciência” foi assumida pelos candidatos da oposição, que jamais disseram claramente o que fariam para “remediar a falta”, mas se investiram da condição de “sujeitos da redenção moral”, logo, da condição imaginária de heróis contra vilões.
No começo, esse investimento se caracterizava pela pouca coerência narrativa, porque os personagens-candidatos tinham as suas vidas prévias imbricadas ora com o partido governista, ora com partidos igualmente envolvidos em situações “de falta”. Por um lado, era mínimo o interesse público pelas personalidades apresentadas: uma personagem que apenas fazia um contraponto “florestal” ao mito operário-sertanejo, um outro cujo maior mérito parecia estar num galho de árvore genealógica e assim por diante.
Por outro lado, também não havia na esfera da audiência (palavra que melhor se adapta no país à noção de “público”) a memória recente de folhetins eletrônicos que sugerissem algo melhor do que políticos tradicionais – algo assim como o personagem Sassá Mutema, que numa telenovela de décadas atrás precedeu a eleição do “caçador de marajás”.
A catástrofe aérea em que morreu o candidato pernambucano forneceu a carga dramática necessária ao folhetim projetado. Dentro e fora da mídia (jornal, rádio, televisão, internet), não havia argumentos nem programas de governo e sim uma emotividade derramada, que se dividia entre a animosidade contra os governistas e a ternura ecológica pela oposição. Nenhum tópico essencial foi trazido a público – tão-só a emersão de um ressentimento represado, cuja explicação psicossociológica ainda está para ser dada.
Próxima atração
Nessa conjuntura emocional, votar nesse ou naquele candidato é uma decisão puramente humoral, análoga à resposta plebiscitária que se dá nas pesquisas sobre heróis e vilões de tevê. Convertendo-se a mídia em espelho distorcido da vida social, tudo fica dependente da reação da audiência a cada capítulo da telenovela vivida. Nunca foi tão volátil o estado de ânimo da “classe-mídia”. É compreensível, assim, que os institutos de pesquisa tenham perdido o pé das coisas no primeiro turno presidencial: O “voto-surpresa” é o vento da opinião que se desmancha no ar.
Ainda é muito cedo para se extraírem grandes conclusões de tudo isso, mas talvez algumas pequenas possam ser adiantadas como sugestões. A primeira é que a telenovela da vida real ajuda a desfazer velhas ilusões quanto ao caráter benigno e cordial das massas que compõem a “classe-mídia”: elas são verdadeiramente sujeitos do ódio e da rejeição parafascista aos “outros” pouco cotados socialmente. Enquanto as seitas fundamentalistas triunfam no quadro do sequestro moral, os ditos não-crentes deixam de esconder o fundamentalismo dos preconceitos.
A segunda pequena conclusão é que o dispositivo de mídia supostamente encarregado de apenas transmitir a novela é, ele próprio, personagem ativo do folhetim, com voz de coro funesto em tragédia grega.
Ou então, se não se puder extrair disso tudo uma lição verdadeiramente política, que ao menos se acolha, no espírito da frase recente de um parlamentar, uma sugestão de natureza fisiológico-midiática: considerando-se a enxurrada de lama das ruas, de corrupção, de denúncias, de baixarias e de manifestações de ódio ao diverso, talvez seja possível redefinir publicamente o canal televisivo como o principal canal excretor de nosso tempo.
E a telenovela? A próxima, quem sabe, poderá talvez ser chamada de “Ressurreição”. De que? Dos nossos piores pesadelos.
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Muniz Sodré é jornalista e escritor, professor titular (aposentado) da Universidade Federal do Rio de Janeiro