A notícia sobre o desmantelamento de uma quadrilha (57 prisões e um total de 78 mandados) que fazia abortos e cobrava até 7.500 reais por um procedimento deveria servir para a imprensa promover um grande debate sobre o assunto.
É preciso discutir a lei, que considera criminosas também as mulheres que se submetem ao aborto, sem levar em consideração os motivos que as levaram à prática.
É preciso ver se as os adolescentes estão recebendo informações suficientes sobre sexo e suas consequências.
É preciso mostrar que, desde que a pessoa tenha dinheiro para pagar, o aborto é permitido no Brasil: “Se a mulher for pobre, porém, precisa provar que foi estuprada ou estar à beira da morte para ter acesso a ele. Como consequência, milhões de adolescentes e mães de família que engravidaram sem querer recorrem ao abortamento clandestino, anualmente” (Drauzio Varella, A Questão do Aborto).
Na terça-feira (14/10), o jornal O Dia:
“Com um médico que tem mais de 50 anos de experiência e tabela de preços que variavam de R$1 mi a R$ 7,5 mil, uma quadrilha especializada em praticar abortos em várias regiões do Rio foi desmantelada pela Corregedoria da Policia Civil durante a Operação Herodes. Para não levantar suspeita, as clínicas ofereciam prescrições médicas pós-aborto e revisões. A medida era para evitar que as pacientes procurassem hospitais depois dos procedimentos.”
E sabe-se lá em que condições sanitárias o processo era feito.
O jornal conta ainda que, entre os detidos, havia 10 médicos e um homem que exercia a função ilegalmente. Os profissionais ganhavam por aborto e um deles chegou a fazer 50 procedimentos em apenas um dia:
“Muitos dos profissionais já haviam sido presos, como, por exemplo, uma médica, acusada de agir no bairro de Guadalupe, contra quem há mais de 6 mil denuúncias de aborto no ano de 2001. Um outro médico, que atuava em Campo Grande e Bonsucesso, já havia sido preso em outras três oportunidades.”
Vidas poupadas
Está na hora de perguntar quem são os verdadeiros beneficiários da criminalização do aborto e o que poderia ser feito para evitar que bandidos (com direito a conta no exterior) continuem explorando mulheres que acabam interrompendo a gravidez de maneira tão violenta. Se considerarmos a disponibilidade de informações e a grande variedade de métodos contraceptivos – inclusive medicamentos fornecidos pela rede de saúde pública –, é inacreditável que ainda haja espaço para esse tipo de indústria no Brasil.
As mulheres, que poderiam denunciar os médicos, enfermeiros e os outros envolvidos no processo, preferem ficar quietas. Ficam quietas por uma boa razão: elas também cometem crime, pela lei, quando se submetem a um aborto. Correm o risco de ir para na cadeia ou, no mínimo, acabar com uma ficha suja na polícia. É pedir demais que uma pessoa traumatizada por precisar de um aborto, obrigada a pagar o preço exigido pelos exploradores, se arrisque a ir para na cadeia para denunciar quem tem recursos para impedir a prisão.
Comoas penas para o crime são de 1 a 4 anos de prisão, os médicos e enfermeiros envolvidos conseguem responder os processos em liberdade ou até serem inocentados. Sem falar que continuam com a prática, ganhando dinheiro e colocando em risco a vida de suas clientes, uma vez que não há qualquer fiscalização sobre as condições sanitárias das clínicas clandestinas – que, segundo estudo da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), realizaram, em 2013, nada menos do que 865 mil procedimentos ilegais. E esses são apenas os números obtidos pela universidade carioca. A quanto chegará essa conta se forem computados os procedimentos feitos no interior deste imenso país?
Se o aborto for regulamentado, se houver uma campanha de esclarecimento para as mulheres carentes, se houver, enfim, uma política pública que ajude as mulheres a evitarem a gravidez indesejada, em alguns anos o aborto clandestino deixará de ser uma indústria que só beneficia alguns criminosos que têm certeza da impunidade. Colocar essa quadrilha na cadeia é apenas um primeiro passo. Se o aborto for regulamentado e não houver a necessidade de clínicas clandestinas, muitas vidas serão poupadas.
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Ligia Martins de Almeida é jornalista