O acórdão da desembargadora Elisabete Filizzola, que liberou a circulação do livro Sinfonia de Minas Gerais – A Vida e a Literatura de João Guimarães Rosa, de Alaor Barbosa, supre a luta pela liberdade de expressão dos biógrafos de uma argumentação jurídica sólida e coerente. A obra foi proibida de circular e recolhida das livrarias desde 2008 atendendo a recurso da filha do escritor, Vilma Guimarães Rosa. Em nome dos herdeiros do autor de Grande Sertão: Veredas, ela alegou que a biografia fora feita sem a autorização destes, exigida pela lei.
Em vez de se limitar à exigência formal da autorização de biografados ou de seus herdeiros como condição sine qua non para que a edição de uma biografia seja comercializada regularmente nas livrarias, a desembargadora deu atenção a cada motivo alegado pelos herdeiros para impedir a circulação do livro sobre o pai. Além de pedir à Justiça a proibição da obra que não autorizou, Vilma Guimarães Rosa acusou seu autor de ter plagiado trechos de Relembramentos: João Guimarães, meu pai, de sua própria autoria. Em entrevista a Julio Maria, publicada no Estado (15/10), Alaor Barbosa se defendeu dizendo que “este é um livro que ela chama de biografia, mas que traz documentos, cartas, discursos de Guimarães”. Ele reconhece ter usado em seu livro trechos desses documentos, mas nenhum é de autoria da herdeira do romancista. No acórdão de 38 páginas, a relatora do processo deu razão ao biógrafo, negando ter havido violação do direito autoral de Vilma Guimarães Rosa, de vez que a transcrição desses trechos se cingiu às limitações impostas pela lei que protege a autoria.
A filha do escritor, também escritora, recorreu ainda a uma das acusações mais comuns empregadas por biografados ou herdeiros para exigirem a proibição de uma biografia: a de o autor ter provocado danos à imagem pública do personagem que lhe serviu de tema. De acordo com Vilma Guimarães Rosa, Barbosa teria imputado a seu pai a pecha de “antipatriótico”. A acusação foi baseada na frase escrita por Barbosa, que reza: “Nunca me deparei, nos textos de Guimarães Rosa, com alguma preocupação com o presente e o futuro do Brasil”. A desembargadora Elisabete Filizzola negou provimento a tal afirmação escrevendo: “As próprias recorrentes assinalam que, ‘durante sua vida, João Guimarães Rosa sempre optou pela discrição, tendo preferido evitar entrevistas sobre sua vida privada e posições políticas’, o que, como se nota, confirmou, com cirúrgica precisão, exatamente o que assevera a biografia em tela”. E completou: “Até porque, obviamente, não se confunde com ‘antipatriotismo’ a conduta apenas reservada com relação a ideologias, bandeiras políticas, etc.”.
Um marco
O acórdão não encontrou no arrazoado do recurso evidência de que o livro, com uma visão apaixonada da obra do mineiro de Cordisburgo, tenha, em qualquer passagem, invadido a fronteira que o escritor considerava indevassável de sua vida privada, mantida “intocada” conforme o acórdão.
Atenta ao que Vilma escreveu em defesa do direito de exclusividade da família sobre a imagem do homem célebre que a constituiu, a desembargadora citou em seu relatório frase de autoria da própria recorrente. Vilma argumentou: “A obra de Guimarães Rosa não pertence somente a nós, suas herdeiras, porém a toda a humanidade”. A relatora limitou-se a acrescentar: “Exatamente”.
A desembargadora Elisabete Filizzola entendeu ainda que a grande motivação do processo foi “calar opiniões, sequer difamatórias” com o nítido e exclusivo fim de “monopolizar” a figura de Rosa.
O acórdão é um marco a se introduzir no debate, ora em curso no Supremo Tribunal Federal, sobre a necessidade de autorização de biografados ou herdeiros para a publicação de biografias. Negue-se ao biógrafo o direito de atribuir ao biografado atitudes falsas e danosas a sua reputação. Mas aos protagonistas das biografias não pode ser dado o direito de impedir o relato de fatos realmente ocorridos em sua vida. E os herdeiros não podem conseguir na Justiça a mera garantia de seu “monopólio” sobre a obra de parentes ilustres.