Lançado há duas semanas numa sessão surpresa no Festival de Cinema de Nova York, entra hoje em cartaz nos EUA “Citizenfour” (Cidadãoquatro), de Laura Poitras. O grande feito do filme é registrar, no calor da hora, o processo de “vazamento” de informações por Edward Snowden sobre a vasta rede de espionagem de comunicações públicas e privadas, domésticas e internacionais, capitaneada pela Agência de Segurança Nacional (NSA, na sigla inglês) dos EUA desde os ataques de 11 de setembro de 2001.
Batizado a partir do pseudônimo escolhido por Snowden para assinar sua mensagem inicial para Laura, “Citizenfour” vai além. Revela o aparecimento de um novo “whistleblower” (vazador de informações confidenciais) ligado à NSA, ainda anônimo, com mais informações comprometedoras para a administração Obama. Traz ainda o “furo” de que a namorada de Snowden, Lindsay Mills, mudou-se em julho passado para a casa onde ele encontrou asilo temporário em Moscou.
Mas o coração de “Citizenfour” pulsa mesmo durante aqueles tensos oito dias do começo de junho de 2013 em Hong Kong, quando ocorreram os primeiros encontros entre o calmo e articulado Snowden (um ex-técnico em rede de comunicações que prestou serviços à comunidade de segurança e informações dos EUA), a cineasta e os dois jornalistas investigativos escolhidos para a análise e divulgação dos documentos sigilosos copiados (o americano Glenn Greenwald e o escocês Ewen MacAskill, ambos à época vinculados ao diário britânico “The Guardian”).
O cenário central é o Mira Hotel, na ex-colônia britânica na China, sendo Rio de Janeiro e Berlim as principais locações secundárias. É no Rio que reside Greenwald, ao lado de seu companheiro brasileiro, David Miranda, e foi para a capital alemã que Laura se mudou após ser sujeitada a constantes e abusivos interrogatórios pelo controle de fronteiras dos EUA (a partir de seu trabalho numa trilogia documental sobre o pós-11 de Setembro, sendo “Meu País, Meu País”, de 2006, e “O Juramento”, de 2010, os dois títulos iniciais).
São quatro as principais sequências de “Citizenfour” no Brasil: três no Rio e uma em Brasília. A primeira filmagem com Greenwald mostra-o trabalhando num notebook em sua casa carioca. Na sequência, um letreiro informa como, já em dezembro de 2012, ele fora contatado por uma fonte, que mais tarde seria identificada como Snowden. A correspondência não prosperou dada a impossibilidade de estabelecer um canal seguro de comunicações.
Endereço moscovita
No terço final do filme, já após quase uma hora de projeção dedicada aos acontecimentos em Hong Kong, acompanhamos Greenwald na redação do jornal “O Globo”, discutindo com o colega José Casado a manchete do grande “furo”, dado no começo de julho de 2013, sobre a extensão da espionagem americana a “milhões de brasileiros”. Um pouco adiante, “Citizenfour” retorna ao país, desta vez para Brasília, a fim de apresentar por cerca de dois minutos o depoimento de Greenwald às comissões de Relações Exteriores e de Defesa Nacional da Câmara e do Senado, em 6 de agosto do ano passado. Por fim, o filme registra o emocionado reencontro alguns dias mais tarde (19/8/2013) entre Greenwald e Miranda no Aeroporto Internacional Tom Jobim, no Rio, após o brasileiro ter ficado detido por quase nove horas pela Scotland Yard ao passar pelo aeroporto londrino de Heathrow, na volta de uma viagem para encontrar Laura em Berlim.
Documentarista assumidamente militante, Laura Poitras estruturou “Citizenfour” como um austero “thriller-verdade”. Ao centro de tudo, a preocupação com o assalto talvez sem precedentes ao direito à privacidade nos EUA e mundo afora pelas administrações americanas e de países aliados (Grã-Bretanha à frente) após o 11 de Setembro.
No site jornalístico “Slate”, o colunista Fred Kaplan critica Laura por omissões, sobretudo quanto ao escopo para ele excessivo do material vazado por Snowden para a imprensa. Kaplan acerta no periférico, mas me parece ser mais um atirando nos mensageiros.
“Citizenfour” é aberto por uma introdução de 20 minutos sobre as várias denúncias pré-Snowden de “whistleblowers” (como William Binney) sobre sistemas oficiais de ampla coleta de dados privados, sempre oficialmente negadas. Segue-se então o registro inédito, feito pela própria Laura, do dia a dia do convívio no Mira Hotel com Snowden, Greenwald e, secundariamente, MacAskill, enquanto estes entrevistam o informante e pouco a pouco tornam públicas suas denúncias. Durante os algo excessivos 40 minutos de conclusão apresentam-se suas várias linhas de desenvolvimento, do inflamado debate mundial em torno das revelações ao impacto destas sobre a vida dos denunciantes.
Ela mesma sob vigilância, Laura não pôde registrar com sua câmera o destino de Snowden a partir do mergulho dele no “underground” (nas palavras dela) ao ser processado pelo Espionage Act de 1917 pelos EUA. É sobretudo pelo uso de letreiros e pela leitura de mensagens entre eles que o filme reconstitui a trajetória dele desde a partida do refúgio no Mira Hotel, em Hong Kong, na companhia de um advogado especializado em direitos humanos. Apoiada pelo WikiLeaks, sua fuga foi estancada no Aeroporto Internacional de Sheremetyevo, em Moscou, onde Snowden esperou por 40 dias a concessão do asilo provisório na Rússia, recentemente estendido.
O único registro em seu novo endereço moscovita, filmado à distância através de uma janela, como que por “uma câmera de vigilância”, na bela sacada de George Packer (“The New Yorker”), revela-o no mais rotineiro trabalho noturno na cozinha, ao lado da namorada. É como uma daquelas pausas líricas nos episódios de “Homeland” ou “24 Horas”. Mas o drama de Edward Snowden é real e não tem fim à vista.
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Amir Labaki é diretor-fundador do É Tudo Verdade – Festival Internacional de Documentários