Esta foi a mais plebiscitária eleição das últimas décadas, em que deveríamos escolher – supostamente – entre a continuidade e a mudança. Só que não. Então, decidi não participar dessa encenação e não votei em nenhum dos dois candidatos. Minha escolha me permite analisar com independência e isenção os fatos que precedem esse momento crucial da política brasileira, particularmente um episódio recente, envolvendo a mais tradicional revista semanal de informações do país.
A Veja, que já vinha sendo questionada pela opinião pública sobre a parcialidade de sua linha editorial manifestamente contrária ao atual governo, saiu definitivamente do armário e escancarou de vez seu ódio doentio e irracional ao PT, ao ex-presidente Lula e à presidente e candidata à reeleição Dilma Rousseff. O tema da reportagem de capa de sua última edição até seria algo coerente com o papel da imprensa livre, que é o de informar, analisar, esclarecer, questionar, apurar, denunciar, usando uma espécie de “procuração” informal que o indivíduo/leitor/cidadão implicitamente concede à mídia em geral, em um regime democrático e num pleno estado de direito. A democracia também assegura à própria imprensa o amplo direito de expressão – ou não seria uma democracia.
Se, por um lado, as pautas escolhidas pela revista e as opiniões que ela publica devem ser respeitadas em nome da intocável liberdade de imprensa, por outro, qualquer pessoa com um mínimo de discernimento e juízo pode perceber na atitude da revista um ato vil, de clara má-fé. É evidente a tentativa da Veja de manipular, em conformidade com seus interesses escusos e até espúrios, um pleito democrático e livre. Não foi inocente antecipação da circulação da revista para 48 horas antes da votação e algumas horas antes do último debate entre os candidatos, que aconteceria na noite da mesma sexta-feira. Era uma clara tentativa de “pautar” o referido debate, dando oportuna munição ao candidato que apoia e apostando na desestabilização emocional de sua adversária, conhecida por sua já folclórica inabilidade nesse tipo de confronto midiático.
Indignação e oportunismo
Não é a primeira vez que vemos esse filme. Já ocorrera antes, no histórico debate Lula x Collor, descaradamente manipulado pela edição do Jornal Nacional, da Rede Globo, dando a falsa impressão ao eleitor de que o caçador de marajás havia massacrado o despreparado líder sindical e operário semianalfabeto. Três décadas passadas desse vergonhoso e emblemático episódio para a História do jornalismo brasileiro, José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, o Boni, diretor da emissora à época, veio a público confessar a farsa montada. Na mesma eleição, ocorreu ainda a patética e desesperada tentativa de se vincular o sequestro do empresário Abílio Diniz ao PT, fato que também teve ampla exploração midiática e cuja dissociação só ocorreria tardiamente, depois da vitória de Collor no segundo turno.
A sordidez dessa prática de publicar graves acusações e denúncias sem dar tempo de defesa ao acusado, na antevéspera do pleito, deveria envergonhar os donos das grandes redes de comunicação. Mas a sua recorrência, eleição após eleição, mostra que a eles pouco importa a verdade, diante de seus interesses privados e de sua necessidade de proximidade com alguns governantes – particularmente com aqueles de grande potencial de lhes destinar polpudas fatias de suas verbas publicitárias. Coerência? Ideologia? Pra quê? Às grandes corporações da mídia interessam os contratos de publicidade, como as empreiteiras, que financiam simultaneamente partidos e coligações rivais, estão de olho em contratos de obras futuras, resultantes de licitações suspeitosas.
A noite seguinte à publicação da Veja foi marcada por pichações da sede da editora por manifestantes que apoiam a candidatura visada pela revista. O ato foi imediatamente repudiado pelas duas candidaturas. Uma, talvez, por indignação ou revolta; outra, talvez por oportunismo político.
Órgãos de defesa da liberdade de imprensa ou representativos da mídia e da atividade jornalística também responderam ao aloprado protesto brandindo a bandeira da imprensa livre e do seu inatacável direito à opinião e expressão.
O fim da credibilidade
Não vi, porém, nenhuma instituição de classe empunhar a bandeira da ética e do jogo limpo no exercício do jornalismo. Prevaleceu, como sempre, o espírito de corpo (ou “de porco”, como a ironia crítica me faculta), tão afeto à nossa classe política, e tão condenado por nós, jornalistas, quando o denunciamos em tantas votações em nossas casas legislativas e tribunais. Dois pesos, duas medidas, é isso?
Definitivamente, parece que os maus feitos, tão recidivos quanto impunes, da política brasileira, tornaram-se modelos para outros setores da sociedade. A imprensa – que já chegou a ser consagrada como “o quarto poder” –, ao tornar-se discípula e cúmplice dessa prática, atira na lama seu maior patrimônio: a credibilidade.
A Veja – que construiu sua credibilidade nos anos 1960-70, como um dos maiores baluartes de resistência à ditadura – acaba de abdicar dessa sua valiosa herança, que inspirou tantos outros veículos de comunicação e jovens profissionais do jornalismo. Não será surpresa se a História da mídia no Brasil, em futuro não muito distante, registrar esse episódio como marco inicial da derrocada de uma das mais importantes publicações do país.
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José Carlos Aragão é jornalista e escritor