O processo eleitoral ora findo foi um dos mais polarizados da história recente do país – e dele a mídia tradicional sai com um amargo sabor de derrota. Os grandes jornais conseguiram, em alguns momentos, pautar a agenda das campanhas, mas não foram capazes de compreender as posições e os anseios das vozes das ruas. Vítima e algoz de sua cobertura fossilizada da agenda política, a imprensa ajudou a reforçar a ideia de que, em termos do eleitorado, as disputas em jogo não passavam de “Fla-Flu eleitoral”. Mas a polarização PT-PSDB possui nuances que passaram ao largo de uma tentativa de compreensão mais aprofundada.
A imprensa, tal como a cúpula de um partido político tradicional, arroga-se o papel de direção e de vanguarda. Atualiza a velha imagem da “torre de marfim” que marcou todo um grupo de intelectuais brasileiros desde a chamada Geração de 1870.
Engalfinhada por interesses de uma oligarquia midiática, a cobertura das eleições caiu mais uma vez no denuncismo vazio, no disse-me-disse das candidaturas e na pauta das pesquisas de intenção de voto. Perdeu mais uma vez a chance de compreender as bases sociais que sustentam os projetos de poder petista e tucano, os variados matizes dessas bases e as formas contemporâneas de construção de novas culturas políticas, o que vem implodindo e renovando o conceito de esfera pública.
Política também é feita de festa
Em nenhuma eleição anterior, as mídias sociais foram tão influentes na condução dos rumos eleitorais. Isso se deve, obviamente, à massificação do acesso à internet e à popularização de sites como Facebook, Twitter, Tumblr e Instagram. Mas apenas a questão tecnológica não explica o efervescente grau de politização da militância 2.0. Politização? Há motivos de sobra para questionamentos: as redes produziram e socializaram boatos sobre a trajetória dos candidatos, ampliaram rejeições e tangenciaram a agenda pública com fatos menores, não raro plantados pelas equipes de marketing das candidaturas. Nesse sentido, contribuíram para a “baixaria”.
Porém, encarar o fenômeno das mídias sociais unicamente pelo viés negativo é alimentar uma visão reducionista. A internet tornou-se plataforma de politização, e vai aos poucos minando os meios tradicionais de formação política e de construção da opinião pública.
Compreendo a politização como um fenômeno horizontal pelo qual os agentes tomam consciência de seus interesses materiais, sociais e culturais, mas, sobretudo, do lugar que ocupam na nação como comunidade imaginada. Nada que se compare ao alarmismo apocalíptico dos velhos dirigentes partidários e da própria imprensa que, do alto do seu púlpito, anunciam uma crescente “despolitização” da sociedade e desqualificam a relação do povo com a política.
A compreensão da política como uma estrutura rígida e a separação entre intelectuais/dirigentes e “povo” não são novas. A historiadora Michelle Perrot, ao analisar o movimento operário na França pós-Comuna de Paris, compreende a greve como a eclosão da festa, a carnavalização do cotidiano e a subversão da hierarquia, às vezes na contramão das lideranças trabalhistas. No livro Nem pátria nem patrão: vida operária e cultura anarquista no Brasil (São Paulo: Brasiliense, 1983), Francisco Foot Hardman discute as tensões e os embates entre a vanguarda anarquista e os operários paulistas, no início do século 20, como parte de um processo de formação de uma cultura da classe operária no Brasil. Política também é feita de festa. Culturas políticas estão imbricadas em processos culturais mais amplos, como o advento da indústria de massa e, nos dias de hoje, a massificação da internet.
O papel do marketing político
O segmento jovem, recém-ingressado nas universidades, vem se tornando uma espécie de vanguarda da zuera, como é autorrotulado o sarcasmo com que episódios da vida política e cultural brasileira vêm sendo trazidos à esfera virtual, através dos populares memes. A frase “The zuera never ends”, citada milhões de vezes nas redes sociais, é símbolo de uma era em que a política é subvertida pelo riso. O Facebook, o Twitter e a blogosfera tornaram-se plataforma de apoio e oposição aos projetos políticos em jogo e estão construindo uma nova forma de politização, na qual esses atores sociais constroem identidades e pautam a agenda pública.
A intelectualidade e a mídia tradicional, que se arrogam o papel de guias da sociedade, não raro encaram esse amplo movimento de forma derrogatória – um “Fla-Flu eleitoral”, mera disputa entre torcidas. E desqualificam o potencial de iniciação política em curso nas redes, em que um simples meme conecta o usuário a esferas de análise mais densas, transformando-o, muitas vezes, em produtor de enunciados. As organizações políticas tradicionais perderam o monopólio desse tipo de enunciado. É crescente o posicionamento do eleitor comum na arena onlineda esfera pública.
A mídia tradicional veicula a zuera, mas seu poder de interferência na dinâmica da internet é reduzido. Ela tem agido como espectadora e se furta a analisar as diversas identidades e questões em jogo. Afinal, as redes sociais já estão segmentadas em comunidades que funcionam como “redutos” político-identitários – LGBT, negros, estudantes, a direita “coxinha”, a “esquerda caviar” etc. –, e é principalmente nelas que se formam consensos e dissensos sobre a agenda pública. Os blogs partidários e apartidários, em conexão com essas comunidades, ajudam a disseminar ideias e fazer germinar novas culturas políticas à direita e à esquerda. Ali também se manifestam críticas e anseios dos eleitores – por que se identificam com a candidatura X e não com a Y? Como avaliam o presente e o futuro do país? Por que se decepcionaram com Z?
Ironicamente, a necessidade de uma sondagem da “alma do povo”, construída pelas primeiras gerações modernistas, encontra eco não na mídia tradicional, mas no marketing político. É ele que vem cumprindo o papel de captar os sentimentos e as oscilações do eleitorado, seus medos, seus desejos, o que os fazem se identificar com o partido político A ou B, ou desacreditar o processo eleitoral. Ao fim, transformam esse conhecimento em mercadoria para “vender” seu candidato-produto. E assim, todos perdemos – eleitores, leitores e cidadãos.
******
Pedro Belchior, pesquisador do Museu Villa-Lobos (RJ), é mestre em História pela Universidade Federal Fluminense e bacharel em História pela Universidade Federal de São João del-Rei